Keoma,
de Enzo Castellari

Keoma,
Itália, 1976
Por volta de 1976
a indústria cinematográfica da Itália passava por
um momento de impasse: a demanda dos rentáveis filmes de gênero(1)
produzidos até então havia diminuído consideravelmente,
já havia pouco interesse por grande parte dos distribuidores internacionais
por estes filmes e várias das grandes personalidades que fizeram
a graça e a fama num passado não muito distante deste braço
bastante específico da cinematografia italiana (nomes como Riccardo
Freda, Sergio Leone, Vittorio Cottafavi e Mario Bava) já se encontravam
inativos por conta de problemas de natureza profissional (Leone, que ainda
estava preparando aquele que seria seu magnum opus, Era Uma
Vez na América, e Bava) ou de natureza pessoal (no caso de
Freda e Cottafavi as idades consideravelmente avançadas). Mas 1976
é também o ano de lançamento de Keoma, talvez
a última relevante incursão de um diretor de filmes de gênero
(o muitas vezes genial Enzo G. Castellari) no spaghetti western,
num filme que relativiza vários aspectos importantes que surgiram
a partir da popularização deste subgênero e, de maneira
bastante surpreendente, põe em xeque os problemas enfrentados pelo
cinema italiano neste período, quando já se prenunciava
uma crise que até hoje afeta a cinematografia do país.
O embrião daquilo
que se transformaria em Keoma surge por volta de 1974, quando Castellari
e o astro Franco Nero se interessam em realizar um filme que, nas palavras
de Castellari, "seria o último dos filmes western italianos".
Por conta de compromissos profissionais (as filmagens do thriller
Pânico em Munique, com William Holden), Nero se separa do
projeto mas antes disso alimenta o interesse do produtor Manolo Bolognini,
o mesmo de um de seus maiores sucessos, Django, em produzir um
último e definitivo filme do ciclo que em grande parte ajudou a
popularizar. Castellari e Bolognini juntarão forças e num
período de um ano conseguem o financiamento necessário para
realizarem o projeto.
Tendo como base um
roteiro do ator Luigi Montefiori (o minotauro de Satyricon, de
Federico Fellini) e dos roteiristas Mino Roli e Nico Ducci (que desagradava
por completo Castellari), as filmagens de Keoma tiveram início
tão logo Nero abandonara os sets de Pânico em Munique.
Reescrevendo dia a dia o roteiro, adicionando ou excluindo cenas de maior
ou menor interesse, e tendo a participação direta dos atores
na escritura dos diálogos, o resultado que Castellari obteve ainda
hoje é surpreendente: uma grande liberdade narrativa, onde de um
minuto a outro nos encontramos em território típico de cineastas
como Anthony Mann e Sergio Leone, John Ford e Sergio Corbucci, para depois
nos vermos envolvidos pelo surrealismo de um Alejandro Jodorowski ou de
um Luis Buñuel.
Na história
de Keoma (Franco Nero), um pistoleiro mestiço que, auxiliando e
tomando conta de uma viúva grávida, retorna à sua
cidade natal após a guerra apenas para descobrir que ela foi tomada
por uma praga e que um homem de nome Caldwell passou a controlá-la
como bem entende, usando de violência e do controle de vários
proscritos para tal, o que menos importa são os contornos bíblicos
que Castellari tenta estabelecer em diversos momentos do filme (o personagem
de Nero como uma espécie de Messias, a viúva como uma espécie
de Maria, a cidade natal como uma Sodoma do velho oeste, além da
bizarra personagem da bruxa que se trata de uma bastante óbvia
alusão a O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman). Mesmo
sendo uma tentativa de relativo interesse, inclusive como comentário
sobre a confusa construção de mitos nesta bastante notável
tradição que é o western, o que realmente
impressiona em Keoma é uma constatação à
qual Castellari chega e que desde o primeiro quadro do filme se
faz presente: que o western e as lendas que se criaram ao redor
e a partir dele alcançaram uma espécie de ponto limite,
de nenhum lugar para onde ir.
Já na abertura,
na absolutamente magistral primeira seqüência do filme, Castellari
dá o tom apocalíptico de sua empreitada: a câmera
passeia por velhas construções de uma cidade fantasma, o
vento forte carrega uma poeira que obscurece nossa visão (e, por
conseguinte, distancia o contato do espectador com a ação),
e por trás disso tudo existe apenas uma silhueta, a de Keoma montado
em seu cavalo e se movendo lentamente contra este vento, até ser
abordado por uma velha mulher, aparentemente uma bruxa Este peso que observamos
na tela se trata de um fantástico comentário acerca de uma
tendência desta época no cinema italiano, a do colapso na
produção do spaghetti western, onde teríamos
Keoma/Nero/Castellari cavalgando/produzindo contra este vento/decadência
do gênero. "Por que voltaste? Por que voltaste?", pergunta a bruxa.
"O mundo continua dando suas voltas, então sempre retornamos ao
mesmo lugar", responde o pistoleiro.
Em questão
de minutos Castellari consegue sintetizar uma longa tradição,
toda a história de um estilo que ao mesmo tempo em que decreta
a decadência se põe também a revitalizar. É
belo e triste perceber que para produzir um último filme - a celebração
das obras que fizeram uma geração de cinéfilos italianos
que cresceram assistindo aos filmes de John Ford, Howard Hawks e Budd
Boetticher voltarem suas câmeras quando já eram diretores
justamente para a distante mitologia norte-americana perpetuada em diversos
clássicos, e que serviriam de base para a criação
e propagação do spaghetti western. Castellari também
precisa olhar o mundo à sua volta e perceber que vários
dos sonhos de sua geração já não eram - e
nem podiam ser - os mesmos. Talvez seja esta constatação
que dê a Keoma seu tom melancólico e niilista.
Mas Keoma não
se esgota em tal acepção e nem poderia, visto que se trata
antes de qualquer coisa de uma homenagem, de um último hurrah
para o western, sempre marginal e marginalizado como o próprio
personagem de Nero. E como o próprio diz no prólogo do filme,
o mundo continua dando as suas voltas, e as coisas retornam sempre ao
mesmo lugar. Existe assim, apesar de tudo, uma esperança, uma vontade
e necessidade de ser cinema, de ser mocinho e bandido, de testemunhar
tiroteios inacreditáveis, de se lutar por uma causa (e apesar das
inúmeras referências a Os Brutos Também Amam
o filme não perde seu vigor e sua graça), de empregar o
slow motion quantas vezes necessário for para alcançar
a abstração que caracteriza alguns dos mais belos momentos
do filme, de aceitar o exagero típico do western italiano
e ser a todo o momento o mais operístico e barroco possível,
de traçar paralelos absurdos entre a mitologia do velho oeste e
a vida de Cristo. E, a tudo isso empregar um senso de poesia, onde passado
e presente dividem o mesmo espaço cênico para reforçar
a psicologia dos personagens (ela existe, mas jamais por razões
aleatórias, sempre trabalhando alguma ação que efetivamente
está em pleno desenlace ou que se fará ou se fez presente
em algum momento do filme), um recurso empregado algumas vezes de maneira
repetitiva mas que não perde em beleza, impacto ou novidade por
conta disso.
Apesar de inúmeras
qualidades, Keoma é um filme imperfeito, de fato. Tanto
melhor para Castellari, Nero e Bolognini! Pois assim eles não precisam
responder aos belíssimos épicos de Sergio Leone, às
fábulas políticas de Sergio Corbucci e Sergio Sollima ou
à eficiência de um Damiano Damiani, para ficar apenas nos
nomes mais importantes do gênero: eles podem se dar ao luxo e à
liberdade de serem um pouco disso tudo e, ainda por cima, podendo escolher
o que de melhor surgiu no western, "spaghetti" ou não.
Como Nero diz na cena final, "O homem que é livre nunca morre".
Pois Castellari, assim como Keoma, e assim como todo o western,
é livre.
Bruno Andrade
1. O spaghetti western, subgênero que surgiu
após os primeiros filmes de Sergio Leone, financiados por italianos
porém geralmente filmados na Espanha, e que de certa maneira retrabalhava
os paradigmas de um gênero tipicamente norte-americano; o giallo,
espécie de terror europeu que partia do formato whodunit
popularizado por Agatha Christie e Sir Conan Doyle mas que tinha como
diferencial uma forte carga psicológica, católica ou sexual
geralmente bastante importantes às tramas; o poliziotteschi,
filmes policiais que foram produzidos com considerável regularidade
após o sucesso da série Dirty Harry, e que em alguns
casos trabalhavam questões políticas relevantes à
Itália da época; e os peplun, épicos que tratavam
de mitos da literatura clássica como Hércules, Ulisses e
Golias, geralmente estrelados por famosos ex-halterofilistas norte-americanos.
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