Horror alla italiana


Uma mão pronta para te pegar em The Whip And The Body de Mario Bava

Poucos ciclos cinematográficos partem de um ponto de partida tão claro quanto o horror à italiana. I Vampiri, de 1956, é o primeiro filme italiano relacionado ao gênero desde o distante Maciaste no Inferno, de 1923. Por ser pioneiro, tem vários defeitos: atuações deficientes e/ou irregulares, falta de ritmo, diálogos que entram 'quadrados' no ouvido. Mas é interessante reparar que ele foi feito um ano antes do estouro da Hammer Films, na Inglaterra, três anos antes da primeira obra-prima européia do gênero (Olhos sem Face, de Georges Franju, que por sinal reaproveita parte do argumento deste).

Tudo começou quando o diretor Riccardo Freda conheceu o diretor de fotografia e técnico de efeitos especiais Mario Bava, durante as filmagens de Os Pecados de Roma, em 1953. Percebendo que tinha em comum com este o gosto por efeitos especiais e filmes de horror, propôs aos produtores que lhe deixassem fazer um filme do gênero. Como eles eram jogadores inveterados, apostou que podia realizá-lo em duas semanas, ao contrário das seis 'regulamentares'. Aposta aceita, mas com 10 dias de filmagem percebeu que só havia conseguido filmar metade do roteiro, e pediu uma prorrogação do prazo, que foi negada. Como Freda não podia ser acusado de ser a pessoa menos estourada do mundo, mandou todos para o inferno e abandonou o projeto. Por incrível que pareça, o diretor de fotografia Mario Bava conseguiu filmar tudo que faltava em dois dias, e o filme ficou pronto.

I Vampiri foi uma decepção de bilheteria. Na mal humorada opinião de Riccardo Freda, seus conterrâneos não acreditavam que fosse possível fazer bons filmes de horror na Itália... viam o nome do filme (I Vampiri), se interessavam, viam os nomes envolvidos (Freda, Bava, Canale) e davam meia volta. Aprenderam a lição: no próximo filme que fizeram juntos (Caitiki, o Monstro Imortal) viraram Robert Hamptom e Marie Foam...

O gênero de horror começa para valer mesmo na Itália com A Máscara do Demônio, de Mario Bava, feito em 1959. Tendo por base o conto "Viy", de Nikolai Gogol, conta a história de uma bruxa que renasce alguns séculos após sua morte para atazanar os descendentes das pessoas que a mandaram para a fogueira. O filme combina um visual expressionista digno dos filmes alemães do início do século (e os do ciclo de horror da Universal) com uma violência brutal digna de sua contemporânea, a Hammer (na verdade mais extrema e chocante). Fez sucesso no mundo todo e definiu todo o visual da chamada 'Golden Age' do horror italiano. Quase todos os filmes desse período eram em preto e branco, para emular o clima desta obra-prima.

Há uma tendência dos críticos menos atentos de atribuir as qualidades de I Vampiri a Mario Bava, e seus defeitos a Freda. Essas pessoas provavelmente não viram O Terrível Dr. Hitchcock, de 1962, a suave história de um necrófago que está sempre à procura de novos amores... rodado em cores, com poucos sets e muita imaginação, é um dos filmes de temática mais agressiva jamais rodados, 'graças' à fértil imaginação de seu roteirista, Ernesto Gastaldi. Na continuação/retomada do tema, O Espectro, apesar de não alcançar os mesmos píncaros da glória que seu antecessor pelo menos se confirmou a familiaridade de seu diretor com o gênero.

Ainda nessa época, o diretor de pepluns (filmes de 'sandálias e espadas', com homens musculosos e seres mitológicos) Giorgio Ferroni deu sua contribuição ao gênero com um dos filmes mais originais jamais cometidos dentro dos limites do cinema de horror. O Moinho das Mulheres de Pedra conta a história de um escultor que assassina mulheres e as transforma em suas criações. Apesar da história não ser necessariamente muito original (vide Museu de Cera, com Vincent Price, que tem premissa semelhante), o modo e o tom que ela é contada faz tudo valer a pena: quase abstrato, com poucos diálogos, de uma maneira que o espectador quase tem que adivinhar o que está acontecendo. Filmado em uma paleta de cores claras, quase como se fosse uma pintura, tem um dos clímaxes mais perversos jamais atingidos no gênero.

Anthony M. Dawson, o futuro diretor do bombástico (no mau sentido da palavra) Yor: O Caçador do Futuro dirigiu um dos grandes clássicos da 'Golden Age' do horror italiano. Castelo de Sangue é um dos mais atmosféricos e violentos filmes de sua época. Conta a história de um jovem que, graças a uma aposta, deve passar a noite no castelo em que morava o escritor Edgar Alan Poe. Uma vez lá, ele tem que conviver com todos os tipos de tara possíveis e imagináveis, e tem que lutar para não entrar na dança... fartas doses de masoquismo e lesbianismo temperam esse filme, cuja versão integral (com um rala e rola com Bárbara Steele que só é conhecido via fotos) só tenha sido descoberta depois do ano 2000...

Como já foi dito, quase todos os filmes dessa época eram em preto e branco, para tentar emular o clima de Black Sunday. Somente um diretor fazia questão de rodar sempre em cores: Mario Bava. Os anos 60 foram os mais profílicos de sua carreira, e ele foi encarreirando uma série de obras-primas: o fantasmagórico As Três Faces do Medo (em contos, com a ilustre presença de Boris Karloff, em seu último grande papel no gênero), o sádico O Chicote e o Corpo (relançado nos cinemas brasileiros no início dos anos 80 como Drácula, o Vampiro do Sexo), com sua trama sadomasoquista (o amor de uma mulher por um fantasma), o visionário O Planeta dos Vampiros (que mistura horror e ficção científica, e teve parte de sua trama copiada por Alien, de Ridley Scott). Depois de praticamente criar um novo gênero cinematográfico, Bava acabou criando outro: o giallo, ou filme de crime italiano. Tudo começa com A Menina que Sabia Demais, em que mistura uma tradição de filme italiano de suspense com o krimi alemão, mas vira arte mesmo com Sangue e Meias Negras, por um simples motivo: o uso da cor, quase sempre em tons pastel, pouquíssimo natural, como se quisesse recriar o visual das capas dos livros de suspense de Edgar Wallace. Foi revolucionário ao ponto de romper a tradição dos krimis, que eram feitos em preto e branco na Alemanha até então e começaram a ser feitos à cores, sob influência desta obra de Bava.

Já na virada dos anos 60 para os 70 começa a trabalhar outro nome fundamental para o gênero: Dario Argento. Em sua estréia como diretor, O Pássaro com Plumas de Cristal, ele dá prosseguimento ao giallo, gênero codificado por Mario Bava, e coloca vários elementos seus: trilha sonora atonal (a cargo de Ennio Morricone), utilização de investigadores com perfil artístico, ritmo diferenciado de edição, apelidado por Craig Ledbetter, da revista European Trash Cinema, de 'cubista'. Foi um sucesso, tendo sido imitado à exaustão durante os anos setenta, e foi sendo refinado pelo próprio Argento (na 'triologia dos bichos') até chegar em sua obra-prima: Prelúdio para Matar. Nesse filme se insere mais um elemento na mistura: a trilha sonora roqueira e barulhenta do Goblin. Até então sempre se fez trilhas sonoras de filme do gênero com orquestra, esse filme mudou em todo mundo o modo como os filmes do gênero são sonorizados no mundo.

Com quase todos os diretores em atividade na Itália fazendo ou giallos ou spaghetti westerns, restou para os veteranos tentar acompanhar o ritmo dos mais jovens. Por acaso ou não, o mais violento e sádico de todos os giallos, 'A Iguana com Lìngua de Fogo', foi dirigido pelo veteraníssimo (quase septagenário na época, 1972) Riccardo Freda. Com o sutil tema da investigação da obra de um assassino que perpetua sua obra com ácido, acabou assustando muitos jovens talentos que não tinham sua imaginação perversa... Mario Bava também seguiu seu caminho, com filmes sanguinolentos como Banho de Sangue, que foi imitado à exaustão nos anos 80 (pela série Sexta-Feira 13). Mas sua obra-prima nos anos 70 foi Lisa e o Diabo. Rodado logo após o sucesso de Baron Blood, contado de forma alegórica, narra a história de uma turista americana que vai parar numa mansão aonde todos parecem ter um passado tenebroso a esconder. Trata-se de um dos filmes mais imaginativos jamais feitos no gênero, porém não foi compreendido em sua época, Não foi vendido para lugar nenhum do mundo, tendo que ser reeditado e acrescido de filmagens de um exorcismo em Casa de Exorcismo. Somente com seu lançamento em DVD, já nos anos 90, foi possível avaliar todo o impacto e imaginação presentes nesse que é um dos filmes mais inventivos jamais cometidos na península da bota.

Logo após revolucionar o gênero policial, Dario Argento fez o mesmo com o horror com Suspiria. Contando a história de uma seita de bruxas escondida dentro de uma escola de dança, tem um dos usos de cor mais vibrantes e imaginativos da história, 'cortesia' do Technicolor de três camadas, 'responsável' por todos os excessos de vermelho presentes no filme. Sua narrativa, que só começa a fazer sentido próximo ao final (quando Udo Kier explica a Jessica Harper – e ao espectador – o que está ocorrendo) deveria ser estudada nas escolas de cinema, em um capítulo de 'como confiar na inteligência do público'...

Já na virada dos anos 70 para os 80 começou a se destacar um dos diretores mais originais dentro do gênero. Lucio Fulci já estava na ativa desde os anos 50, dirigindo filmes de todos os gêneros imagináveis, e começou a se destacar durante o ciclo do giallo, com obras como Don't Torture a Duckling e A Mulher em Pele de Lagarto. Ao fazer Zombie 2 em 1979 ele entrou no panteão dos grandes cineastas do gênero. Combinando narrativas simples, sem grandes frescuras, com um grande apuro visual e uma técnica cinematográfica impecável, ele reinventou o gênero gore, fazendo-o alcançar níveis inimagináveis. Na seqüência de filmes que começa em Zombie 2 e vai até A Casa do Cemitério, em 1983 (incluindo Pavor na Cidade dos Zumbis, New York Ripper e sua obra-prima, The Beyond) ele foi simplesmente impecável, entregando uma obra-prima do gênero atrás da outra, quase anualmente.

Outro cineasta que apareceu mais ou menos nessa época foi Joe D'amato. Nos poucos filmes que fez no gênero tentou misturar ao gore extremo altas doses de erotismo(como pode ser visto no impecável A Noite Erótica dos Mortos Vivos). Como o público não foi muito receptivo a essa mistura ele se dedicou a outro gênero em que imaginação e pouca grana são essenciais: o pornô, onde foi mestre até sua morte, no final dos anos 90.

Com a retração de mercado que começou a acontecer no final dos anos 70 e culminou no aniquilamento da produção comercial italiana, poucos cineastas tiveram a oportunidade de aparecer nesse período. Mario Bava morreu em 1980 (uma semana após o médico tê-lo diagnosticado como tendo 'a saúde de um touro'), Ricardo Freda, octagenário, se aposentou, Fulci rompeu a parceria com a Fulvia Film (que o financiou em seus grandes momentos) e teve dificuldade em financiar seus projetos. Somente Dario Argento continuou filmando com regularidade e, mais importante, bons orçamentos. Vários de seus melhores filmes são dos anos 80: Tenebræ, Phenomena, Terror na Ópera.

O único grande nome ligado ao gênero que apareceu após seu apogeu, nos anos 70, foi Michele Soavi. Começou como ator, foi promovido a co-diretor por seus mentores, Joe D'amato e Dario Argento (também trabalhou nas complicadas filmagens de Barão de Munchausen, de Terry Gillian) e fez uma notável série de grandes filmes: Pássaro Sangrento, A Catedral, A Seita e, o último suspiro do horror made in Italy como gênero, Dellamore Dellamorte, o grande filme fantástico dos anos 90. Esse último dá a impressão de ter sido dirigido por um discípulo freak de Luis Buñuel, tal carga de poesia visual e violência que carrega.

Infelizmente não tem aparecido nada de útil do gênero vindo da Itália, desde o belo canto de cisne que foi Dellamore Dellamorte. A crise de confiança dos investidores com o gênero, que persiste desde meados dos anos 90, prejudica demais o aparecimento de novos talentos, visto que nem um grande talento como Soavi consegue levantar dinheiro para levar adiante seus projetos. Só nos resta torcer para que o quadro se reverta, permitindo o aparecimento de novos talentos por aqueles lados.

Carlos Thomaz Albornoz