Lucio Fulci, entre as trevas e o além


Lucio Fulci (à esquerda) é abraçado por Mario Bava

Já de saída vale notar que na obra de Lucio Fulci existe uma espécie de incompletude. Num primeiro contato com seus filmes, o que se instaura é a percepção de uma urgência e um senso de instabilidade, fatores que costumam intimidar espectadores mais incautos. Esta urgência afluirá não apenas no percurso tortuoso de sua carreira (belos momentos de plenitude artística seguidos por períodos de crise, onde não raro dirigia os famosos filmes feitos "sob encomenda", algo bastante comum para diretores de filmes de gênero), mas também no plano da realização, de sua encenação. A tal "incompletude", desta maneira, se tornará uma característica marcante no seu corpo-de-trabalho, essencial no que auxilia a formação do olhar brusco, por vezes até grosseiro, que caracteriza não apenas filmes menores, como When Alice Broke the Mirror e Pavor na Cidade dos Zumbis, mas também as obras-primas resultantes da parceria com o produtor Fabrizio De Angelis (Terror nas Trevas e Zumbi 2 - A Volta dos Mortos) ou os belos resultados alcançados com Don't Torture a Duckling e Cat in the Brain. Com o intuito de distanciar Fulci de um Argento ou de um Bava, será preciso partir desta particularidade no seu olhar para delinearmos seus interesses. Pois o que importa para Fulci não é a crença na beleza da imagem, por mais violenta que seja sua afiguração, como em Bava, e com a possível exceção de Terror nas Trevas não se trata também da eterna busca pela imagem catártica que caracteriza todo o cinema de Argento (a parede de Suspiria, o reflexo no espelho em Prelúdio Para Matar, a entrega de Anna aos homens policiais em Síndrome Mortal): o que fascina Fulci é efetivamente a imagem, apenas ela, e tudo o que existe de mais direto, de mais incisivo e, francamente, de mais tosco nela.

Lucio Fulci nasceu em Roma, em 17 de junho de 1927. Após o começo como crítico de arte quando ainda jovem, Fulci ingressa no Centro Sperimentale, a famosa escola de cinema fundada em 1935 e dirigida por Roberto Rossellini, onde teve aulas com realizadores de renome como Luchino Visconti e Michelangelo Antonioni. Justamente na época de ouro da produção cinematográfica italiana (final dos anos 40 e início dos 50), Fulci abandona o Centro para se embrenhar na escrita de roteiros para filmes de comédia, geralmente dirigidos por Steno. Posteriormente chega ao posto de assistente de direção e exerce esta função no filme Meu Filho Nero, dirigido por Steno em 1956, onde Mario Bava atuou como diretor de fotografia e técnico de efeitos especiais. Em 1959 dirige I Ladri, seu primeiro filme, um bizarro veículo para o cômico Totò e que resultou num imenso fracasso financeiro. Em seguida dirige Ragazzi del Juke-Box, sucesso de público, abrindo um filão que durante todo o início da década de 60 obteve sucesso na Itália: a comédia musical juvenil de rock'n'roll. É após Jukebox que vem o primeiro e mais comportado momento de sua carreira: entre 1960 e 1972 realiza uma série de comédias, spaghetti westerns, filmes de espionagem, terrores góticos oriundos dos sucessos de Mario Bava e Antonio Margheriti e historietas de ação vagamente inspiradas nos romances de Jack London, entre outros. Mas por uma questão de praticidade (a quase que completa ausência dos títulos dirigidos por Fulci nesta época no mercado de vídeo internacional) e interesse (o fato de Fulci trabalhar na maioria destes filmes geralmente como pouco mais que um artífice eficiente, perambulando por muitos destes projetos sem maiores ambições estéticas ou autorais), não devemos nos prender a esse primeiro período. Nesta série de artigos nos prenderemos tão-somente à fase em que Fulci redireciona sua carreira, desta vez tendo como interesse os gêneros fantásticos (especificamente o terror e o suspense), e que hoje percebemos ser o período mais fértil e de resultados mais interessantes dentro de sua eclética obra.

Se assim analisarmos, o cinema de Fulci começaria realmente no intervalo entre 1968 e 1972, quando dirige Perversion Story (1969), A Lizard in a Woman's Skin (1971) e Don't Torture a Duckling (1972). É importante assinalar que Fulci deve este seu "reinício", em boa parte, ao primeiro filme de Dario Argento (O Pássaro das Plumas de Cristal), sucesso inesperado que ajudou a disseminar o formato giallo, e a uma certa mania dos produtores italianos nas décadas de 60 e 70 em darem continuidade à produção de determinados tipos de filme - os spaghetti westerns são o perfeito exemplo desta tática - que agradavam não apenas o público italiano mas que também alcançavam sucesso com uma parcela de espectadores internacionais, especialmente na França, Alemanha e Estados Unidos.

Dos três filmes, o que imediatamente mais chama a atenção é Don't Torture a Duckling. Tendo como ponto de partida a história de uma pequena cidadezinha na Sicília onde jovens garotos são encontrados assassinados, Fulci realiza um giallo seminal ao mesmo tempo em que estabelece temas que tomariam especial importância em alguns de seus filmes posteriores (Pavor na Cidade dos Zumbis, The New York Ripper). Ainda hoje surpreende a objetividade e o despojamento da mise en scène de Duckling: desde a primeira seqüência, onde nos deparamos com alguns planos gerais de viadutos - e a câmera habilidosa de Sergio d'Offizi literalmente "passeia", sempre despojada e solta, não apenas por entre estes viadutos como também consegue o trunfo de contrastá-los com o que existe de bucólico e rupestre nas paisagens sicilianas - até chegarmos às mãos de uma descontrolada Florinda Bolkan desenterrando um feto, sentimos um desconforto, a presença de uma efetiva ambigüidade que permanecerá durante todo o filme. É justamente a sobreposição do arcaico com o moderno, do rude com o polido, que interessa Fulci aqui e que o interessará novamente em Zumbi 2 - A Volta dos Mortos (o Caribe, com suas tradições milenares e seus arredores decrépitos, envolvendo os heróis americanos) e em Pavor nas Cidades dos Zumbis (a antiga cidade de Salem, detentora de um dos sete portais do inferno, ameaçando os habitantes da atual Dunwich). Mas é em Terror nas Trevas e Cat in the Brain que Fulci dispõe esse "contraste" de forma definitiva e definidora, o transformando no próprio assunto de ambos os filmes: no primeiro é o apocalipse, projetado pelos acontecimentos irreversíveis de um passado amaldiçoado, e no segundo é a impossibilidade de Fulci parar de ter pesadelos pois ele mesmo dirigiu os filmes que os provocam.

Em Duckling, a presença desta ligação do presente com um passado é particularmente eficaz e essencial para um dos mais importantes contornos narrativos do filme: a personagem de Florinda Bolkan, uma pretensa bruxa conhecida no seu vilarejo por ter tido um filho do diabo (uma criança que nasceu deformada e que morreu logo após o nascimento), acaba sendo assassinada não apenas por ter praticado magia negra contra três dos garotos mortos, mas também por conta de seu passado nebuloso e marcado por lendas e invenções. Fulci, sempre vítima de enorme preconceito, não perderá nenhuma oportunidade de atacá-lo ferozmente: tal como Bolkan é assassinada por um crime que não cometeu, o problemático Bob de Pavor na Cidade dos Zumbis e o mago Schweik de Terror nas Trevas também sofrerão as agruras de serem vistos com olhos desconfiados nas comunidades a que pertencem. A cena do assassinato de Bolkan, por sinal, é um dos mais belos e comoventes momentos do filme e também de toda a obra de Fulci: após ser espancada num cemitério pelos pais das crianças mortas (e quaisquer paralelos com as torturas praticadas pelos fascistas durante a Segunda Guerra não são mera coincidência, conforme Fulci declararia numa entrevista concedida à revista L'Écran Fantastique), ela se arrasta de maneira atribulada enquanto escutamos a um sucesso da época cantado por Ornella Vanoni, Quei Giorni Insieme a Te. O tom direto encontrado por Fulci para filmar a cena, com closes de Bolkan tentando se levantar e falhando a cada tentativa entrecortados pelo uso da câmera subjetiva (usada à perfeição), e posteriormente a silhueta desfigurada da atriz agonizando perto de um viaduto enquanto vários carros passam reto por ela (não por não a perceberem mas justamente por saberem que é ela a acusada e, ao menos pelo povo da cidadezinha onde mora, culpada e condenada por ter matado os garotos) acabam sendo confrontados pela música melosa de Vanoni. O resultado de tamanha ousadia formal é uma seqüência bastante violenta e a própria análise de sua violência, o tipo de posicionamento crítico que parece escapar às percepções dos detratores de Fulci, quando não de uma boa parte de seus fãs. A melancolia presente na cena só retornará com tamanho impacto no clímax do filme, onde Fulci problematiza os aspectos mais extremos da culpa católica, justamente o tema mais caro à sua obra; tão caro, aliás, que lhe custou o hiato de cinco anos onde não dirigiu nenhum filme de terror, tamanho o escândalo que Duckling provocou quando originalmente lançado.

É apenas em 1979 que Fulci retorna totalmente ao terror e dá corpo ao que de mais fantástico o gênero oferece em termos de temas e abordagens em Zumbi 2 - A Volta dos Mortos (Zombie), produzido para ser distribuído na Itália como continuação de Zombie - O Despertar dos Mortos, de George Romero. Sucesso internacional, o filme se consagra em grande parte pela utilização dos efeitos especiais, de autoria do sempre eficiente técnico de maquiagem Giannetto De Rossi. É a partir de Zumbi 2, aliás, que começa o período de maior sucesso financeiro e de público de Fulci, e também a de alguma forma limitadora ligação de seu nome com o título de "godfather of gore" ("padrinho das tripas"), algo que obviamente ajudou a manter o desinteresse da crítica em geral pelos seus filmes desta época.

Zumbi 2 marca também a primeira parceria com o produtor Fabrizio De Angelis, que posteriormente se associa a Fulci num dos mais felizes passos da carreira de ambos. Após as produções de Pavor na Cidade dos Zumbis, The Black Cat e Luca, o Contrabandista, os três feitos em decorrência e logo a seguir do sucesso de Zumbi 2, Fulci é convidado por De Angelis para integrar o time que irá compor a Fulvia Film, uma produtora dedicada apenas a filmes de gênero e de baixo orçamento. Para selar a parceria, Fulci dirige aquele que ainda hoje é considerado pelos seus fãs - e após o relançamento promovido por Quentin Tarantino e Sage Stallone, filho de Sylvester, por alguns críticos também - como sendo sua obra máxima, Terror nas Trevas (The Beyond/L'Aldilà). Na história de Liza, a ex-modelo herdeira de um pequeno hotel em New Orleans que descobre estar morando numa das sete portas do inferno (e esta é apenas a primeira das semelhanças que Terror nas Trevas guarda com Pavor na Cidade dos Zumbis), o que mais interessa Fulci é a criação de atmosferas, a exploração de ambientes macabros, filmar névoas que cobrem horizontes e horizontes que não existem sem névoas (como no primeiro encontro entre Liza e Emily e especialmente na magnífica, inigualável cena final). Se Fulci sempre foi mantido numa posição muito marginal entre os principais diretores de horror da Itália, talvez seja justamente Terror nas Trevas o filme que melhor ilustra o quão magistral seu cinema pode ser, equiparável ao melhor de Argento e Bava. Verdadeiro inventário de todas as idiossincrasias do terror italiano - violência estilizada, sonoplastia exagerada, abandono da narrativa a favor de um domínio completo na construção de climas e utilização marcante do CinemaScope -, Terror nas Trevas se encerra com uma das imagens mais aterradoras de toda a história do cinema: o "além", o "outro lado" do título original toma forma e os protagonistas são envolvidos por ele. Por todos os lados nada além de uma paisagem totalmente desolada, imponentemente absoluta na sua imensidão, circunda o casal formado por Liza (a atriz inglesa Catriona MacColl, favorita de Fulci) e John (o ator neozelandês David Warbeck). Quando percebem que estão cercados, que nada mais existe ao seu redor a não ser um vão que podem chamar apenas de "além", Liza e John correm em direção a esta dimensão desconhecida, e é neste momento de poesia pura, de entrega total ao cinema, que o filme de Fulci se encerra. É o senso de completude e de catarse contidos na última cena de Terror nas Trevas que fazem esta ser uma obra tão única quanto especial na carreira de Fulci; desta vez, ele consegue ir além da imagem.

Após Terror nas Trevas, Fulci dá continuidade à parceria com De Angelis dirigindo A Casa do Cemitério ainda em 1981 e The New York Ripper e Manhattan Baby em 1982. A Casa do Cemitério é um belo filme, que dá não apenas continuidade a alguns dos conceitos com os quais Fulci trabalhou em Terror nas Trevas como também deixa bem clara a intenção do diretor em realizar um cinema de citações literárias, passando por Allan Poe e Lovecraft como também por Stephen King e Henry James. The New York Ripper é um giallo agressivo (alguns diriam muito) onde o autor tentará mais uma vez a exploração de dois temas que o obcecam desde Don't Torture a Duckling: a culpa católica e a desconfiança de uma comunidade inteira durante uma série de assassinatos. Os resultados são muito mais do que satisfatórios, lembrando em várias passagens o Taxi Driver de Martin Scorsese, além de possuir uma particularmente memorável homenagem a Hitchcock (a longa seqüência de perseguição no metrô). Manhattan Baby marca o fim da associação entre Fulci e De Angelis com um retumbante fracasso de bilheteria e um moderado tombo na carreira do diretor.

Apesar de ser uma espécie de emblema do início de um período soturno na obra de Fulci, Manhattan Baby não deixa de ter sua relativa significância: por volta de 1982 o panorama começava a mudar no mercado cinematográfico italiano, e o fracasso comercial do filme foi apenas um de vários nesta época. Os distribuidores estavam começando a se deparar com dificuldades no mercado internacional (um progressivo desinteresse na compra de filmes pelos distribuidores), o ritmo da produção começa a diminuir e pequenas produtoras como a própria Fulvia Film começam a fechar suas portas. Sempre um diretor que dependeu de um específico esquema de produção rápido e barato, caracterizado por produtores e financiadores aventureiros (como o próprio De Angelis), pela preferência ao cinema de gênero e pela garantia de distribuição internacional - atividade que deu ao cinema italiano do final da década de 50 ao início dos 80 muito de seu financiamento -, Fulci entrará no momento mais sinuoso de sua carreira nos anos que seguirão.

Terminado seu contrato com a Fulvia Film, Fulci dirige Conquest, filme de aventura estrelado pelo astro mexicano Jorge Rivero. Trabalhará também em filmes realizados para a televisão italiana, numa malfadada continuação de Zumbi 2 - A Volta dos Mortos que acabou abandonando no meio das filmagens, nos razoavelmente interessantes The Devil's Honey e Ghosts of Sodom, e naquele que seria seu último grande trabalho, o auto-reflexivo filme-ensaio Cat in the Brain (conhecido também como Nightmare Concert). Numa época de séria crise na sua carreira e no cinema italiano, Fulci desta vez volta sua câmera para registrar o mundo ao seu redor. Ao constatar os horrores que perpetuou nos filmes que dirigiu, Lucio Fulci (o próprio interpretando a si mesmo) busca a ajuda de um psiquiatra e por meio de uma série de hipnoses tenta se livrar dos pesadelos que andam abalando seu cotidiano. Já na primeira cena nos deparamos com um Lucio Fulci imerso na escuridão da sala onde escreve o roteiro de seu próximo projeto apenas para pouco depois sermos confrontados com violentíssimas imagens de um gato devorando seu cérebro. Esta seqüência e a do nightmare concert que dá início ao filme que Fulci dirige dentro de seu filme dão de fato a Cat in the Brain um tom bastante amargurado, porém cenas como a do delírio que Fulci tem sobre as filmagens de uma orgia nazista durante entrevista concedida para uma rede de televisão alemã e o final brincalhão - onde vemos o diretor livre de seus pesadelos zarpando para o alto-mar com uma das musas de seu último filme - ajudam a ironizar bastante a proposta inicial, lembrando o espectador que se trata em primeiro e último lugar de apenas um filme.

Em 1990, logo após Cat in the Brain, Fulci dirige Demonia, seguido em 1991 por Voices from Beyond e em 1992 pelo seu derradeiro filme, Door to Silence, estrelado por John Savage e filmado em New Orleans, onde Fulci tenta retomar algo da atmosfera criada em Terror nas Trevas sem muito sucesso. Neste período, a dimensão da crise que a produção cinematográfica italiana alcança impede que Fulci dê início a qualquer projeto. É apenas em 1996 que surge a possibilidade de um retorno, com o anúncio da produção de O Museu dos Horrores, adaptação do romance Museu de Cera de Gaston Leroux, e que marcaria a primeira reunião entre Lucio Fulci (na direção) e Dario Argento (atuando como produtor junto com seu sócio Giuseppe Columbo). Duas semanas antes do início das filmagens, Lucio Fulci morre em Roma, no dia 13 de março de 1996. Ainda um realizador desprezado por boa parte de público e crítica, Fulci, se ainda vivo, seria o primeiro a não se importar com tal constatação: costumava dizer que realizava seus filmes para os jovens, pois estes estavam mais dispostos a aceitarem as liberdades e exageros que os caracterizam.

Como uma voz diz durante a cena final de Terror nas Trevas, "... E você encarará o mar das trevas, e tudo que nele pode ser explorado". Este "mar das trevas", para Fulci, é o próprio cinema, o cinema fantástico, o seu cinema e vários outros; é o que existe de mais desconhecido e etéreo nos filmes; porém, mais do que isso tudo, é uma crença, uma crença que o cinema é antes de tudo instância da poesia, do horrível presente nos sonhos mas também daquilo que é belo nos pesadelos. Seja no clímax de Terror nas Trevas, no assassinato de Florinda Bolkan em Don't Torture a Duckling, nas conclusões de A Casa do Cemitério e Zumbi 2 ou nos delírios presentes em Cat in the Brain, os filmes de Fulci são sempre manifestos a favor de um cinema sem limites. Melhor para ele, melhor para o cinema.

Bruno Andrade