Crítica ao "Pensamento
sobre o ator marginal", de Ruy Gardnier
Antes
de mais nada, quero deixar claro que, por impossibilidade geográfica,
nao pude assistir aos filmes da mostra de cinema marginal, e mais, nunca
vi nenhum dos filmes marginais citados no artigo. A resposta à
pergunta óbvia que resulta desta afirmaçao - "entao
porquê diabos você está escrevendo uma crítica
ao artigo?" - é simples: no artigo nao se fala apenas do ator
marginal, mas se extende o discurso ao ator em geral, tanto de cinema
nao-marginal quanto de teatro. E aí residem alguns problemas que
nao posso deixar de apontar.
O artigo fala da preponderância, na formaçao de um ator,
do "método" Stanislavski, e critica este método,
lançando uma "verdade profunda das artes cênicas: teatro
e cinema se faz com gestos, não com a alma", aludindo, para
dar força à esta "verdade profunda", a Grotowsky,
Artaud e Diderot. Aí já temos um problema: Stanislavski
rompe com a tradiçao teatral de sua época e com os postulados
de Denis Diderot, aprofundando o trabalho do ator de tal maneira que,
por primeira vez, o ator deixava de ser um títere para poder criar
algo. Justo o contrário do que reza o artigo. E sim, é claro
que a introspecçao, o psicologismo e a busca por um naturalismo
possível sao características deste método muitas
vezes supervaloradas (ou pior, vistas como o único caminho possível)
na formaçao de um ator ou de um diretor de atores. Mas o que o
autor parece nao saber é: o próprio Stanislavski rompeu
com grande parte de seus postulados ao longo de seus livros, criando ao
final o método de açoes físicas; seu discípulo
Meyerhold levou essa busca a um extremo, criando um teatro mais físico
e igualmente criativo; de aí vem Grotowski e seu teatro pobre.
A quebra do método só é possível a partir
de seu estabelecimento. E independentemente de tudo isso, nenhum deles
disse em nenhum momento que teatro se faz com corpo e nao com "alma",
nem rezou por uma superficialidade na atuaçao. A busca vai por
outro caminho.
Compreendo e aprecio a crítica ao psicologismo turvador vigente
na interpretaçao, e tenho que admitir que também me incomoda
esta predominancia na formaçao do ator. Porém, menosprezar
é bem distinto de criticar, e a tentativa de retirar de Stanislavski
o valor que tem para o desenvolvimento da arte da atuaçao é
tao falaciosa quanto dizer que D.W. Griffith fez o cinema retroceder.
É justamente por esta importância vital que se deve criticar,
nao menosprezar, tentar romper a tradiçao para recriar, nunca para
destruir.
A Contracampo é dos poucos espaços que conheço no
mundo que ainda tenta pensar alguma coisa em relaçao ao cinema
e à arte. Agora, perdoem-me as duras palavras, mas por mais carinho
que tenha, quando uma revista postula "verdades profundas" acerca
do que for, e com tal nível de irresponsabilidade, começa
a ser difícil acreditar na integridade da mesma.
Abraço,
Pedro Freire.
Curiosas as conseqüências
que podem ser tiradas de uma leitura apressada. Só elas poderiam
derivar de um texto como "Um Pensamento sobre o Ator Marginal"
a recusa de todo o trabalho de Stanislavsky. Ao contrário, fala-se
de conceitos, e os conceitos que se busca recusar são aqueles que
correspondem à obra escrita e prática do que se convencionou
chamar de "primeiro Stanislavsky"; a eles correspondem os conceitos
herdados ao longo do século XX, como reza o artigo. Se os "atos
físicos" do segundo Stanislavsky são relevantes (e
nunca, nesse artigo ou em outro, se disse o contrário) e se são
preparação para os teatros realista e de vanguarda (idem),
é justamente porque Stanislavsky é o primeiro a criticar
veementemente seu trabalho anterior. Resta dizer, contudo, que tradicionalmente
esses trabalhos não vieram à luz do debate sobre as artes
cênicas senão tardiamente, cabendo à educação
dos atores no "método Stanislavsky" apenas a cartilha
de primeiros ensinamentos do teórico e encenador. Para todos os
efeitos, o Stanislavsky da tradição e, logo, aquele que
produz os efeitos para fora da estrita textualidade (e convém lembrar
que o texto não é escrito "contra" Stanislavsky,
mas contra uma certa concepção de teatro e cinema, o que
é completamente diferente), é o da interioridade, o da adequação,
o do psicologismo e do naturalismo.
E a respeito de Diderot, é lamentável que uma carta de tom
tão virulento não tenha feito minimamente o dever de casa
e tenha lido sequer as orelhas de Diderot. Não precisava mergulhar
na enorme bibliografia sobre teatro do filósofo, que não
está na maior parte traduzida e é difícil de achar.
Bastava dirigir-se ao popular volume Pensadores (Ed. Abril, diversas edições)
dedicado ao pensador e, dentro dele, algumas vinte páginas intituladas
"Paradoxo sobre o comediante". Reside nesse texto, e não
em Stanislavsky ou qualquer outro, a primeira valorização
do ator como artista criador sob o ponto de vista da teoria estética.
É justamente contra a idéia do ator como títere que
Diderot se bate. Não é mera impressão subjetiva:
a tese, vastamente aceita pelos comentadores, pode ser encontrada muito
bem explicada no belo livro que Yvon Belaval dedicou ao assunto, "La
Esthétique sans paradoxe de Diderot".
Quanto à "verdade profunda" aparentemente tão
deplorada pelo leitor, não se trata de nenhum anátema, e
sim de um princípio básico da expressividade, artistica
ou não. Tente, sem mexer qualquer músculo do corpo, exprimir
algo que tem em mente. Se a experiência provar-se frutífera,
será uma revolução do ponto de vista da telecinese...
Se não é possível defender essa "superficialidade"
com Meyerhold ou Grotowsky, é bem possível fazê-lo
com Artaud, com Carmelo Bene e com Gilles Deleuze (cf. "Lógica
do Sentido"), um autor que nos parece bastante sensível à
expressão artística e aos seus desenvolvimentos teóricos
e expressivos no século XX. Por fim, consideramos que a integridade
em uma revista deve ser buscada na forma com que ela possa criar argumentos
fortes, coerentes e consistentes, e não na simplória dicotomia
"certo/errado" tão frágil e obscurantista. Erros
advindos do excesso, se os há, mesmo que incômodos, não
são malvindos. São conseqüência de quem tenta.
Já dizia um de nossos honoráveis que o único erro,
o único pecado é a inexistência. A insignificância
também, diríamos. E desse pecado, acreditamos, fugimos -
mesmo que pelo excesso.
Ruy Gardnier
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