Terror nas Trevas/A
Casa do Além,
de Lucio Fulci
L'Aldila / The Beyond, Itália,1981
Terror nas Trevas, de Lucio Fulci
Em O Pássaro Sangrento,
de Michele Soavi, há uma troca de diálogos entre um produtor e um diretor
de um balé. O produtor está furioso com uma passagem que o diretor havia
inserido e pergunta sobre qual o sentido dela, no que o diretor responde:
"Você consegue imaginar a reação do publico quando ver a vítima estuprando
seu próprio assassino? Será sensacional!". Esta fé na força da imagem
pode servir a todo o cinema de horror italiano, mas serve especialmente
para Lucio Fulci. Ninguém levou esta convicção tão longe na Itália quanto
ele, e neste sentido The Beyond é provavelmente seu maior trunfo.
Há em The Beyond uma trama,
a respeito de um hotel colocado numa das sete portas do inferno, com começo,
meio e fim. Mas por meio de sua mise en scène, Fulci transforma
o filme numa série de seqüências delirantes que parecem buscar uma imagem
síntese, uma imagem que dê noção dos horrores ocorridos durante a projeção.
Peguemos uma das mais belas e inventivas passagens do filme, onde a mãe
e a filha de um coadjuvante morto um pouco antes vão ao necrotério ver
seu corpo. A mãe pede para a filha que espere do lado de fora e entra
na sala onde está o corpo de seu marido. A câmera permanece com a filha
que parece totalmente deslocada no local, e nada acontece até que algum
tempo depois ouvimos um grito da mãe. A filha entra apressada na sala
encontrando a mãe caída no chão enquanto um vaso de ácido escorre sobre
seu rosto. A garota se desespera ao ver o rosto da mãe se dissolvendo
ao mesmo tempo em que um líquido vermelho escorre em sua direção, dando
alguns passos para trás até abrir um armário onde há um cadáver em decomposição
que alguns instantes antes estava numa maca ao lado do pai. Fim. Óbvio
que lendo esta descrição a passagem não faz nenhuma lógica, mas a direção
de Fulci a transforma numa série de perturbadoras e claustrofóbicas imagens.
Vale ressaltar que o início, nada mais que uma jovem sentada em um banco,
é tão impactante quanto os estranhos acontecimentos que se seguem.
Existem diversas seqüências similares
ao longo do filme, nem sempre tão bem sucedidas (uma envolvendo um homem
sendo atacados por aranhas é bem fraca). Se a imaginação de Fulci nem
sempre ocasiona as melhores ou mais impressionantes cenas, nos melhores
momentos de The Beyond - como na passagem citada - ela une uma
elaboração visual inventiva e uma forte atmosfera que dificilmente deixam
de causar grande impacto no espectador. Muitos podem até se sentir acima
do filme e de sua trama sobre sete portas do inferno, algumas atuações
inexpressivas e efeitos que mostram as limitações da produção, mas é difícil
negar que The Beyond assusta e que algumas seqüências ficam bem
depois de ver o filme. Esta habilidade de Fulci em transcender qualquer
material através da força de sua encenação é comparável a poucos (alguns
brilhantes filmecos de Edgar G. Ulmer vêm à cabeça). Pequenos objetos
como uma campainha, um cão e especialmente um quadro são manipulados de
forma a se tornarem ameaçadores. O porão do hotel parece se tornar o lobby
para um inferno que engole todos que por ali se aventuram.
Se The Beyond é esta profissão
de fé para Fulci, isto se dá também por ser sua visão sobre o apocalipse.
E o que é o apocalipse para Fulci se não o momento em que cada imagem
parece sair do controle, cada situação se torna um delírio quase caótico?
Um plano parece resumir todo o filme: um carro percorre uma ponte cuja
geometria cria a sensação de um funil cujo destino parece ser inevitável,
uma mulher cega (cega por ser a única sobrevivente do massacre anterior
ou terá ela realmente sobrevivido?). Ao casal protagonista, Lisa, a mulher
que herdou o hotel, e John McCabe, o estóico médico que a ajuda, restará
a função de testemunhas (e a ação principal de The Beyond parece
sempre estar longe deles). Como espectadores, eles tentaram negar todas
as evidências do universo fantástico construído ao seu redor; no caso
dele, mesmo quando confrontado com a prova concreta dos zumbis. É na última
cena que The Beyond chega ao final da tal ponte e Lisa e John encaram
o além do título. Com a ajuda da trilha de Fabio Frizzi, é construído
um momento de cinema que só poderia existir num cinema como o de Fulci.
A John McCabe e ao autor deste texto só restou baixar a guarda.
Filipe Furtado
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