Mario Bava e o Jogo dos Bonecos


Telly Savalas em Lisa and the Devil, de Mario Bava

Nos filmes de Mario Bava há quase sempre uma trama labiríntica por onde seus personagens precisam tentar se guiar, quase sempre uma conspiração, um mistério desconhecido que vai levando-os um a um. Nelas há sempre algum personagem que é o grande manipulador, e Bava nunca esconde que o maior de todos eles é o próprio cineasta guiando seus personagens e público a um fim que lhe parece inevitável. Este posicionamento de cima sobre o que é narrado é algo que Bava herdou do cinema clássico (vale lembrar que enquanto os investigadores de Argento são quase sempre apenas curiosos, os protagonistas de Bava estão presos a inevitáveis intrigas familiares). O que diferencia Mario Bava deste cinema é uma necessidade de tematizar está herança, de colocar seu próprio cinema em questão, mas ao mesmo tempo se manter fiel a ele, pois não há aqui aquele revisionismo onde o diretor constrói um distanciamento irônico a fim de desmascarar os clichês do gênero.

Nisto Banho de Sangue (1971) é exemplar. Bava elimina qualquer ponto de identificação para o espectador que é convidado a apenas acompanhar as várias maquinações e assassinatos sem torcer para nenhuma parte. O que impressiona é que apesar disso Banho de Sangue nunca deixa de funcionar como exercício de gênero, o recurso pode distancia-los um pouco, mas não os impede de se envolver. Sem poder entrar na trama acompanhando um personagem, o público apenas acompanha como Bava joga um personagem contra o outro.

The Whip and the Body e Mata, Bebe, Mata são bons exemplos do tipo de intriga familiar que atraia o diretor e das possibilidades que elas o ofereciam.  São filmes que desde a estilização da fotografia e cenários chamam a atenção para o artifício do cinema. Mais ainda são filmes onde nada é o que parece ser, em que as imagens enganam e onde o diretor parece estar sempre pregando uma nova peça no espectador. Mata, Bebe, Mata, cuja trama lembra muito A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça de Burton (grande fã de Bava), não só apresenta as intrigas habituais do diretor, como apresenta vitimas que são forçadas ao suicídio pelo fantasma de uma criança que por sua vez também é manipulada pela mãe. O herói deslocado (um médico que veio a pequena vila realizar uma autópsia) assim como o espectador pouca faz além de testemunhar este jogo de manipulações (como, por sinal, o irmão bom moço de Christopher Lee em The Whip and the Body).

Um dos filmes mais bem sucedidos no desenvolvimento do tema calha em ser um dos aparentemente menos pessoais filmes do diretor. Four Times that Night, uma comédia erótica que reconta quatro versões diferentes para uma noitada de um casal. Na primeira contada pela mulher, ele a estupra. Na segunda pelo ponto de vista deles, eles fazem sexo a noite toda. Na terceira narrada pelo porteiro voyeur, o homem se torna um homossexual que arranja mulheres para a esposa lésbica de seu amante que tenta seduzi-la. Na quarta Bava derruba as expectativas do público apresentando-o a um professor que promete relatar os fatos como de fato ocorreram e o que acabamos vendo é uma série de acontecimentos cotidianos sem nada especial. Este quarto episódio me parece bem significativo na visão do diretor sobre o assunto. De um lado o diretor precisa ser bem aberto com seu espectador sobre seus métodos para manipula-lo, de outro crê numa necessidade desta mão controlando os eventos na tela que do contrario se tornam efadonhos, e se Four Times That Night é um filme menor na carreira de Bava, não é por se tratar de um registro atípico e sim por este quarto episódio por mais interessante que seja de se discutir não consegue equilibrar a veia autoral e as espectativas de gênero como Banho de Sangue.

Mas é com Lisa e o Diabo (1972) que Bava melhor desenvolve o assunto. Desde os créditos iniciais, o diretor deixa claro: o diabo do titulo (Telly Savallas) é o próprio Bava.Ao contrario de outras figuras manipuladoras que figuram nos filmes do diretor, o diabo figura a parte dos acontecimentos nunca se tornando outro personagem a ser conduzido pelo cineasta. Os créditos iniciais mostram-no embaralhando um jogo de cartas, cada uma delas representando um dos poucos membros do elenco. O restante do filme se resumira exatamente a isto, o Diabo construindo situações em que as demais personagens atuarão, mesmo que sem perceber. Por vezes eles se tornam de fato bonecos e retornam da morte sempre que ao Diabo interessar. Lisa (Elke Sommer) parece condenada pelo diabo a reencenar o destino de uma mulher idêntica que morreu anos atrás e as figuras entorno dela logo se revelarão fantasmas que não percebem que já estão mortos. Bava freqüentemente usou seus atores como verdadeiros manequins e aqui o Diabo literaliza a situação construindo um jogo de bonecos, um pesadelo do qual não há escapatória. Tudo feito bem as claras do espectador que desde o inicio já é apresentado as regras do jogo.

Filipe Furtado