Artigo demasiado humano



Tal como esses ateus violentos que põem bombas numa igreja, o que é uma forma de acreditar em Deus.
Ernesto Sabato

Novelas. O Brasil deixou de ser um país de filmes para ser um de novelas. Por mais que isso doa ou irrite, por mais que se tente fugir disso, a realidade impõe-se de maneira melodramática e, quando menos esperamos, vemos na frente uma televisão ligada dando por encerrado mais um capítulo do folhetim. O Brasil já foi um dia dos filmes, apesar do explícito descaso com a sua memória. Um dia o brasileiro já enfrentou filas quilométricas para assistir a uma Chanchada, ou uma comédia ligeira, ou mesmo uma pornochanchada. Hoje fica em casa para assistir às novelas, engordando os dígitos de computadores acoplados ao sonho. O Brasil de hoje é o do IBOPE.

Os cineastas brasileiros, pouco a pouco, vão retomando aquela antiga imagem que os laicos faziam dele, um ser imoral, quase um parasita, que vomita pelas sete ventas seu veneno e seu sêmem, subvertendo o desejo de um produto limpo, claro, inodoro, muito embora fetichista e carnívoro. O brasileiro optou pela televisão, que é carnívora, apesar de inodora. A classe média desejou isso do fundo de suas insaciáveis entranhas. O povo brasileiro quer o melodrama e o escapismo: entretanto fomenta um cinema que se quer visceral, que se quer artístico, mas que não consegue passar, na grande maioria de seus títulos, de um arremedo inviável das novelas. O povo brasileiro não tem a mínima idéia de que está bancando um cinema que é totalmente dispensável para ele. E como se não bastasse, depois de produzir os filmes e bancar seus realizadores, os involuntários ainda têm de pagar um preço alto para os assistir, atravessando toda a periferia até o cinema mais próximo.
Enquanto enfrentava a sua pior crise, o cinema nacional era taxado de pornográfico pelos compatriotas. Hoje, depois de sentir a pressão de um renascimento às custas de um mercado moralizador, os cineastas brasileiros começam a evidenciar, por atitudes vis recorrentes, a sua vocação de parasitas. Subtraíram das cenas de sexo o suor, o esperma, fotografaram-nas, quando eram indispensáveis para o conteúdo dramático da cena, em cores puxadas para o âmbar, para o entardecer; para o azul, quando a lua estava cheia, em recortes mais do que sugestivos. Entretanto, vemos que, apesar desta aparente mudança de enfoque e abordagem nos filmes, as relações dos cineastas com o dinheiro público não mudou. O que vemos é a criação de uma Casta Cinematográfica que acaba sufocando o que seria um crescimento natural e abrangente da produção audiovisual brasileira e que, de maneira inconseqüente, dispensa o público com uma certa afetação e esnobismo, até.

Luís Alberto Morris fez um filme de fundamental importância para a compreensão do "pathos" do cinema brasileiro. Galante, o produtor da Boca do Lixo: versátil, popular, um produtor no âmago do cinema, aquele que se encontra no perímetro onde se conjugam, se separam, os vetores que tornam o nosso cinema a vítima de fortes contrações estomacais. O Cinema como mão de obra, a sobrevivência do cinema inseparável da sobrevivência dos seus realizadores, que precisam comer, precisam pagar suas contas e transformam o filme em vida, em carne, em pão, tudo servido à mesa. O filme de Morris fala por si, mas o que podemos adiantar aqui é que, depois de assisti-lo, fica-se uma vontade de estabelecer correlações, principalmente, com a atual conjuntura cinematográfica.
Neste sentido, o que é o cinema brasileiro de hoje? Depois de assistir um filme tão revelador, percebemos que o cinema hoje não alimenta ninguém mais. Muito pelo contrário. Ele provoca a fome e a miséria. Produções milionárias estão a caminho e elas só alimentam A Casta, só alimentam seus rebentos que se multiplicam, assim como se multiplicam os celulares e toda uma série de produtos dispensáveis que são vinculados como fundamentais pelos herdeiros de sangue. Um milhão, oito milhões são desviados para a construção de cidades cenográficas, enquanto indigentes acumulam-se nas ruas e o desamparo se espalha ao redor da Direção de Arte, acuada. O murmúrio é constante, sendo a equipe de som a mais prejudicada, pelo silêncio atualmente impossibilitado.
Por mais que pese esta minha certa amargura no texto, creio, ser minha argumentação bastante razoável. É só dar uma espiada para a calçada mais próxima e verão que não deixo de ter uma certa dose de razão. Debaixo das marquises tem um corpo mergulhado no torpor e na depressão de uma vida sem sentido. Se não há ninguém no momento do outro lado, se nos aproximarmos, sentiremos o cheiro de urina impregnando o reboco e a umidade do chão, mostrando que há poucos minutos um deles esteve ali, deitado sob o sol ou sob a chuva fina. Volte para casa, sente um pouco e pense nisso.

Voltando às novelas, ou melhor, aos filmes. Tenho a impressão de que o cinema no Brasil hoje, como está, é algo totalmente dispensável. Isto não quer dizer que nossos filmes são todos ruins, absolutamente. Mas o ônus que a sociedade brasileira tem de pagar por isso não compensa a quantidade pouca de boas idéias e, acima de tudo, de boas intenções. Não se pode ficar calado frente ao cenário que transforma o cinema no oposto da vida, da esperança, quando sua substância ao invés de motivada pelo humanismo, nasce do desdém para com aqueles que são a fonte da sua própria existência- o Ser em toda a sua complexidade. Esta atitude é nociva, quanto mais imaginarmos um mundo onde há a possibilidade de vida permanente, em experiências mutáveis e misteriosas.
Mas, do jeito que tá, meu chapa, o melhor é deixar o Brasil entregue às novelas...

Guilherme Sarmiento