All
That Jazz - O Show Deve Continuar,
de Bob Fosse

All
that jazz, EUA, 1979
Será que um
filme indicado a nove Oscars (tendo ganhado quatro), e vencedor da Palma
de Ouro em Cannes precisa realmente ser revisto? Há ainda o que
se dizer depois de tamanho reconhecimento? No caso de All That Jazz
a resposta não poderia ser mais positiva, e em especial pelas circunstâncias
conjunturais e estruturais que o ligam a hoje, a 2002. Quais circunstâncias
são essas? Estruturalmente falando, a história do cinema
americano contemporâneo (e por definição do cinema
mundial). Conjunturalmente o recente relançamento de Apocalypse
Now, que trouxe aos cinemas um dos outros concorrentes, junto com
o filme de Fosse, ao Oscar de melhor filme em 1979; além do ainda
mais recente lançamento do Episódio 2. De que formas
estas idéias se unem? É mais simples do que parece.
Na década de
70 o cinema americano viveu um de seus momentos centrais de definição,
talvez como antes só tenha acontecido na década de 20/30
(que marca o início do domínio do mercado mundial e do estabelecimento
de Hollywood como capital do reino do cinema). Na verdade os EUA como
um todo viviam um momento central: saídos da ressaca do fim dos
anos 60, com todas as suas revoluções (sexuais, políticas,
raciais, sociais), viam os valores mais caros a si, tão prezados
e louvados nas décadas de 40 e 50 com especial ênfase no
cinema como forma de construção do imaginário do
american way of life, passarem a ser frontalmente questionados.
O cinema especialmente vivia uma crise ainda maior, com a popularização
rapidíssima da televisão. A brecha aberta por essa crise,
junto com a politização crescente e a chegada ao "poder"
da primeira geração de cineastas criados nas universidades
de cinema ou como "cinéfilos", assistindo e problematizando os
clássicos de Hollywood e também os filmes estrangeiros que
a eles chegavam, tudo isso permitia que houvesse um clima altamente favorável
para a renovação das propostas do cinema americano dominante.
É neste momento
(a partir do fim dos anos 60, mas com seu ápice decididamente nos
anos 70) que surgem as primeiras obras de uma geração que
une Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Woody Allen, Michael Cimino,
Robert Altman, Terence Malick, Brian De Palma, Mike Nichols, ou ainda
é quando fazem alguns de seus principais filmes John Cassavetes,
John Schlesinger, Sidney Lumet. A liberdade que rondava a criação
dos filmes em plena Hollywood só podia ser entendida dentro deste
contexto de relativa crise de reavaliação, onde o questionamento
era parte natural do momento. Tudo estava por ser posto em cheque: o país,
o mundo, o ser humano, o cinema.
Só isso explica
que, no mesmo ano, dois verdadeiros ensaios filosófico-audiovisuais,
como eram Apocalypse Now e All That Jazz, não só
fossem realizados por grandes estúdios, mas também lançados
com sucesso e concorressem a tantos Oscars e ganhassem ambos a Palma de
Ouro em Cannes. Claro que não convém aqui esquecer os detalhes
específicos das dificuldades enfrentadas pelos diretores de ambos
os filmes, não só no que tange a realização
dos mesmos, como com relação ao relacionamento com os donos
dos estúdios. Mas, ainda assim, os filmes foram feitos, lançados
e vistos, e isso em si mesmo é um fenômeno.
Se poderia julgar
pelo conjunto das obras e de tantos cineastas consagrados naquela década,
que se apresentava ao cinema americano um novo caminho de contestação,
reflexão e liberdade narrativa e estética como nunca antes
visto. Mas, também não se pode ignorar que dos mesmos bancos
universitários e cadeiras de cinéfilos, surgem nesta década
outras duas figuras que ajudariam ainda mais a mudar o cinema americano
do futuro: George Lucas e Steven Spielberg. Porque, se os diretores citados
mais acima viveram, em sua maioria, o momento-ápice de suas carreiras
naqueles anos 70, estes dois apenas estabeleceram os alicerces não
só para seu domínio pessoal sobre o cinema americano de
décadas seguintes (até hoje, como se pode ver pelo fato
de ambos terem enormes sucessos de bilheteria recém-lançados
no verão americano de 2002, enquanto a maioria dos outros citados
está sem filmar, ou sem um grande sucesso há anos), mas
também uma virada mais do que estética, e sim de direcionamento
no cinema mundial. Principalmente com Guerra nas Estrelas e
Tubarão os dois reinventaram o cinema americano, trazendo para
ele o conceito do "filme de verão", da aventura e ficção
científica como gêneros "nobres", do espectador-ideal não
mais como o adulto mas sim o adolescente. Os anos 80 e 90 viram a pragmatização
extrema destas noções, muito mais do que seus criadores
podiam prever (façamos justiça, aliás, em dizer que
ambos não estiveram à frente deste processo conscientemente,
e que seus diluidores são infinitamente inferiores a eles), levando
ao cinema que vemos hoje. Um cinema onde Brian De Palma e David Lynch
precisam ir buscar financiamento na França, onde Coppola, Cimino
e Nichols não têm lugar, onde Scorsese parece tentar manter-se
vivo como pode, e onde Allen se repete a todo filme.
Foi muito em função
do que aconteceu em Hollywood nos anos 70 que podemos entender o cinema
americano que vemos hoje. Ali, claramente, o cinema pôde ver duas
correntes distintas de suas potencialidades. Seria muito possível
dizer que não eram excludentes, e que poderiam conviver pacificamente,
mas não é o que a história mostrou. Uma das correntes
foi praticamente sufocada pela outra, a possibilidade da arte e da experimentação
pela indústria do lucro exacerbado (é claro que há
inúmeras "exceções de regra", mas tratamos aqui,
grosso modo, de um retrato macro da produção e seu sistema).
Assim, Apocalypse Now e All That Jazz, que podiam ser lidos
à época como o ápice da consolidação
de uma liberdade de linguagem inédita no grande cinema americano,
eram na verdade o canto do cisne de uma década. O que, aliás,
se visto pelos temas e idéias trazidas em ambos os filmes, parece
absolutamente adequado, e quase premonitório.
Para fechar esta idéia,
nada melhor do que a história contada por Roy Scheider no comentário
que acompanha o DVD do filme de Bob Fosse: Scheider, também ator
de Tubarão, foi assistir a uma sessão de All That
Jazz com Spielberg. Ao final, o diretor estava eufórico com
o que tinha visto. Dias depois, Scheider recebe uma ligação
de Bob Fosse, dizendo que Spielberg tinha ligado para ele. "Você
sabe o que ele me disse?", perguntou Fosse. "Que eu devo estar louco de
terminar um filme daquele jeito, que eu vou perder milhões de dólares
de bilheteria por conta disso." Quem viu o filme sabe: não havia
outro jeito de encerrar um filme que, afinal, trata de morte acima de
tudo. Mas, o "novo cinema" que então engatinhava já tinha
o seu ideólogo: deve-se trocar coerência por lucro, sempre.
Aqui jaz.
* *
*
Mas, vamos deixar
de lado o fator histórico, tão relevante neste caso, e falar
um pouquinho do filme em si. Afinal, o que torna All That Jazz uma
obra tão admirável? Para começar, a coragem de seu
autor (que de fato pode ser creditado como tal, por ser diretor, roteirista,
coreógrafo) de fazer, basicamente, uma autobiografia no cinema.
Mas, não apenas uma autobiografia congratulatória ou nostálgica,
e sim a biografia de um homem que é tão destrutivo com os
outros quanto consigo próprio por ser, basicamente, um viciado
em viver ao máximo, o que o coloca muito perto de morrer. Nesta
biografia Fosse tem a coragem de retratar o seu próprio processo
clínico, que o levaria eventualmente à morte (e assim o
filme pode ser considerado, mais uma vez, premonitório), assim
como apresentar de forma absolutamente próxima do real uma série
de pessoas que estavam ainda vivas e muito perto dele. Além de
se mostrar um viciado, mulherengo, manipulador, perfeccionista, entre
outras qualidades.
Somente esta coragem,
porém, não levaria o filme a um patamar especial, pois poderia
resultar em simples sensacionalismo ou na crítica ácida
e ao mesmo tempo vazia e moralista de um sistema, de um "negócio"
ou de uma forma de vida. Porém a esta coragem se somava uma dose
ainda maior de generosidade e entrega à vida, que transborda de
cada sequência do filme. Só assim Fosse consegue transformar
a história de uma morte anunciada numa ode a estar vivo. Na época,
ele foi muito criticado justamente por pintar um retrato final onde sua
morte era gloriosa e ele era chamado de egocêntrico. Bom, todo artista
é, a priori, um egocêntrico. No entanto, o que faltou
enxergar é que a morte era gloriosa apesar de profundamente dolorida,
e isso se dava por se tratar de um personagem que ao invés de se
entregar a ela enfrentou-a não com um desafio tolo, mas como um
complemento natural ao que se optou na vida.
É assim que
o filme consegue fugir do moralismo barato reinante, segundo o qual um
personagem sempre sofre por ter sido infiel, por ser viciado em drogas,
alcoólatra, mau pai ou marido. O protagonista de Fosse sofre sim,
e muito, em consequência disso tudo. Mas não se arrepende
nem por um segundo porque suas "fraquezas" são o que o manteve
vivo a cada dia, o que o fazia levantar da cama e querer viver para início
de conversa. Quando todas as campanhas anti-drogas ou a favor dos valores
familiares fracassam por tentarem retratar apenas o inferno destas situações,
Fosse é realista: estas coisas matam sim, mas antes disso elas
completam muitas vezes um ser humano, e fazem ele viver. Cabe a cada um
decidir até onde está disposto a ir, mas que ninguém
se prive do que precisa viver só porque isso "mata". Viver mata,
e ainda assim nós insistimos em fazê-lo.
E o mais incrível:
todas estas questões não estão num filme preto e
branco, escuro e cheio de fog feito na Suécia, e sim num musical
hollywoodiano. Assim como Coppola no Apocalypse Now, o que mais
impressiona em All That Jazz é justamente que ele consegue
tocar em todas estas notas e muitas outras, sem deixar de ser um autêntico
exemplar do maravilhamento típico do cinemão americano mais
popular. Onde Coppola virava as convenções do cinema de
guerra e aventura de cabeça para baixo, e ao mesmo tempo que refletia
sobre o vazio da existência criava um espetáculo audiovisual
hipnotizante e deslumbrante, Fosse faz o mesmo com o estilo musical: reinventa
as possibilidades e regras que regem o andamento dos números, a
utilização dramática e/ou cômica da música,
os momentos adequados a uma canção. Encanta e enlouquece,
simultaneamente.
E, acima de tudo,
filma bem demais. Cada sequência é uma aula de decupagem,
de montagem, de ritmo. A câmera se integra com seus atores e bailarinos
de forma quase hipnótica, os cortes antecipam ou interrompem ações.
Há tantas sequências antológicas no filme, e ao mesmo
tempo sem que cada uma queira simplesmente chamar atenção
para si: todas estão completamente integradas a um projeto. Assim,
são igualmente fenomenais os grandes números musicais (como
o inicial, o final e o do ensaio da peça) e as pequenas cenas entre
os atores. Atores, aliás, fantásticos, capitaneados por
um Roy Scheider possuído. Mas, mais do que isso, atores que a câmera
lê como poucas, sabendo onde está a inflexão mais
importante, o momento mais significativo, a reação mais
expressiva. Assim é que cenas de dois personagens como a de pai
e filha dançando, ou a da ex-mulher com o ex-marido, ou a namorada
na cama com o namorado, ou o produtor com o cineasta, ou em especial um
pequeníssimo momento entre o personagem principal e uma mulher
moribunda no hospital são tão completamente apaixonantes
como os grandes números.
Da primeira à
última sequência All That Jazz exala aquela que talvez
seja a mais rara e necessária qualidade de um filme: a simples
necessidade que seu autor tenha de que o filme exista. Cada fotograma
é sentido, é vivo, é pulsante, é humano, é
vital. Humano como são todas as tantas falhas de caráter
deste personagem, que só o tornam mais e mais fascinante. All
That Jazz é um filme para quem ama cinema, mas acima de tudo
para quem ama a vida e tudo que faz parte dela, incluída aí
a morte. Iguala vida e arte, como deve ser.
Eduardo Valente
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