A TV desconhecida: Globo Repórter/Globo Shell Especial


Parte 1- Debate panorâmico, perguntas em aberto.

Oriundos de uma curiosa gênese dos documentários brasileiros na TV, a série de programas da chamada época áurea do programa Globo Repórter teve uma pequena parte de seus mais de 70 curtas e médias metragens recuperada do limbo a que a TV Globo havia relegado nos últimos 20 anos. Ao todo, a mostra organizada por Beth Formaggini dentro do É Tudo Verdade 2002, trouxe à tona 14 trabalhos de importantes cineastas brasileiros, numa época em que muitos deles estavam descobrindo não só a linguagem do documentário cinematográfico como o próprio espaço expressivo da televisão.

Diferentes estéticas e experimentações narrativas foram realizadas, numa das fases mais ricas e bem sucedidas da TV no Brasil. Com audiência acima dos 60 pontos e direção geral de Paulo Gil Soares, o programa marcou época antes dos padrões de qualidade e do telejornalismo normatizado.

No debate realizado no CCBB do Rio de Janeiro na noite do dia 25 de Abril estiveram presentes 4 desses cineastas: Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., João Batista de Andrade e Maurice Capovilla; além de uma representante do Centro de Documentações da Rede Globo.

Preocupada em defender a boa imagem Global de qualidade, a funcionária da TV Globo se resumiu a definir o Centro de Documentação da Rede Globo como um dos melhores do mundo e a reafirmar a emissora como o maior centro da memória audiovisual brasileira. Por mais verídica que possa ser essa constatação, com seus mais de 500 mil programas preservados, a efusiva defesa da TV Globo como a grande protetora da memória brasileira, tornou-se por vezes constrangedora diante da precariedade apresentada na preservação desse material.

No mais, e principalmente, os cineastas ali presentes puderam traçar os panoramas de suas participações nos 10 anos de experimentação que marcaram o Globo Repórter (e seu antecessor, Globo Shell Especial), trazendo à tona aspectos técnicos e estéticos de um período televisivo onde as normas e os padrões comunicativos de "qualidade", hoje tão naturalizados, ainda tremiam para se impor.


MAURICE CAPOVILLA - participou do núcleo de produção da produtora independente Blimp Filmes, responsável por diversos programas encomendados pela emissora:

Maurice abriu o debate analisando os aspectos de liberdade presentes naqueles 10 anos em que o programa esteve nas mãos dos cineastas. Como um veículo novo, a TV aparecia no Brasil como a possibilidade de um tipo de comunicação de massa nunca antes imaginada. Apesar de chamados de "traidores" por grande parte dos cineastas da época, esses realizadores viam na TV uma poderosa ferramenta através da qual seria possível "mostrar o Brasil aos brasileiros", com uma constância não permitida pelo cinema.

Diferentemente dos programas jornalísticos de hoje, o programa se destacava pela diversidade estética e narrativa, apostando em novos formatos e se preocupando muito mais com as Perguntas e as Dúvidas do que com as respostas.

Não havia ainda o peso do padrão estético e da identidade visual televisiva ditando os modos de se tratar os assuntos - pelo contrário: a experimentação era a grande força motriz daqueles documentários. "Cada programa era um programa novo, cada filme era um filme único".

Capovilla frisou a experimentação como a ferramenta que fazia mesmo de elementos tradicionais (como a narração em off) não representassem uma limitação estética. (O cineasta também aproveitou para frisar que um modelo único de documentar, "contrário a qualquer tipo de narração off ou utilização de músicas incidentais, pode ser perigoso e significar uma limitação estética para nosso cinema documental" - rebatendo as recorrentes críticas da acadêmica Consuelo Lins, presente na platéia.)

Para Capovilla (na época já tendo realizado obras-primas como O Profeta da Fome), o programa foi o responsável pelas grandes revoluções no modo de se fazer TV no Brasil, influenciando inclusive as populares telenovelas: "foi nessa época que a dramaturgia televisiva começou a descobrir a liberdade das filmagens externas e do som direto com ruídos." São dessa época de grande repercussão do Globo Repórter, as primeiras grandes adaptações das obras de Jorge Amado para a TV e a descoberta da luz e do ambiente brasileiro pela teledramaturgia brasileira.


WALTER LIMA JR. - contratado pela Rede Globo no núcleo carioca do programa, foi responsável por uns dos primeiros programas do fecundo Globo Shell Especial:

Walter começou o debate com o que seria uma anedótica gênese do Globo Repórter: segundo o cineasta, tudo teria tido origem num programa de auditório da TV Tupi "onde uma médium de capa preta teria participado de cerca de 30 minutos de programa com suas previsões do futuro e causado um verdadeiro transe nacional".

O sucesso desse tipo de programa de "baixo calão" teria incentivado um grupo de importantes militares da época a procurar a TV Globo e "pedir" um maior incentivo a um nível "mais alto" na televisão brasileira. Curiosamente, dessa iniciativa dos militares, teria surgido a primeira idéia do Globo Shell Especial. O programa seria uma forma de trazer à TV Brasileira os tais programas de "qualidade".

Com a direção geral de Paulo Gil Soares (veterano das caravanas Farkas), o programa se encaminhou para o formato do documentário cinematográfico e teve como preceito a falta de diretrizes estéticas. O uso do som-direto foi também responsável por se conseguir tratar de temas censuráveis sem que os textos (somente o som off era impreterivelmente revisado pelos censores) fossem vetados pelos militares. Para Walter, o programa foi responsável pela primeira grande troca técnica e estética entre os profissionais da TV e do cinema no Brasil.

Por outro lado, de um ponto de vista mais pessoal, Walter responsabilizou o programa por sua redescoberta da realidade brasileira. Foram as viagens e as descobertas das paisagens brasileiras que trouxeram a possibilidade de uma liberdade criativa que fossem além dos centros "sufocantes" da ditadura militar.

Estabelecia-se uma relação diferenciada com aqueles espaços e aqueles personagens. Uma intimidade criativa "onde o diretor não era famoso como os repórteres de hoje, não eram estrelas da TV, não eram enviados diretos da emissora". O tipo de relação conseguida com os personagens era bem diferente da estabelecida nos telejornais tradicionais, onde as pessoas dão entrevistas a verdadeiros mitos da televisão: "Imagine o que é dar uma entrevista para o Bial..." Quando o programa teve seu formato final estabelecido e inflexibilizado (virada dos anos70 para os 80), parte do vigor criativo começou a se perder e se encaixar no diretismo discursivo do jornalismo.


JOÃO BATISTA DE ANDRADE - participou do núcleo paulista formado pela emissora, em busca, em parte, do grande mercado publicitário de São Paulo.

Começou sua experiência na TV ao lado do jornalista Wladimir Herzog na TV Cultura no programa A Hora da Notícia. No programa eram realizados pequenos documentários diários sobre atualidades, "sempre optando por temas polêmicos vistos com um olhar diferente do discurso oficial". Quando o programa foi suspenso pelos militares e a equipe expulsa, João Batista foi contratado pela Rede Globo para realizar alguns programas no núcleo paulista do Globo Repórter.

Numa época em que os confrontos armados contra a ditadura já estavam enfraquecidos e já se falava numa possibilidade de abertura política no país, a procura do espaço da TV como ação política parecia essencial: "a TV só trazia programas de auditório e a visão institucional do Brasil...uma visão de verdade limitada à ditadura dos press releases oficiais."

Para João Batista, o Globo Repórter era visto como uma tentativa de se buscar o Brasil que essa TV ainda não conhecia. A proposta era a descoberta daquilo que não estava nas pautas oficiais da imprensa. "Naquela época - diz João Batista - filmávamos o Brasil. Hoje o repórter é que é o assunto".

Quando o programa passou nas 23:00 paras as 21:00 horas, a diretoria da Rede Globo fez um pedido literal para que o nível do programa: "baixasse". Esse processo que se iniciou no final dos anos 70 chegou a seu ápice no início dos anos 80: época em que João Batista diz ter ouvido a seguinte diretriz por parte da diretoria Global (sobre um programa dirigido por ele):

"Vamos cortar fora tudo isso aqui! Vocês cineastas precisam entender que aqui não há mais lugar para autoria...aqui só há agora o coletivo!" Foi o último trabalho do cineasta para a emissora.

EDUARDO COUTINHO - trabalhou por 9 anos no núcleo carioca do programa, fazendo desde traduções de especiais estrangeiros até a direção de episódios:

Coutinho inicia seu debate com a seguinte frase: "A palavra chave aqui é 'BRECHA'!" Para o diretor, que conviveu mais intensamente com os bastidores do programa, os filmes realizados pelos cineastas representaram uma pequena, porém representativa, brecha que a TV brasileira proporcionou aos cineastas brasileiros numa época de incertezas. "Pois se à 23:00 horas já era difícil falar em política, como então segurar a repressão quando o Globo Repórter foi para o horário nobre?"

Para Coutinho havia dois tipos de repressão muito marcantes: a política (relacionada diretamente aos temas) e a de linguagem (relacionada a um emergente padrão visual da emissora). "Porque linguagem, não podemos esquecer, é política."

Talvez o mais pessimista ou o mais consciente dos 4 diretores, Coutinho fez questão de frisar a quantidade de sapos que teve que engolir para conseguir realizar uns poucos programas interessantes... "Porque havia reportagens e documentários": as reportagens seguiam o padrão global em formação, os documentários eram mais livres. Para se conseguir realizar esses filmes era necessário uma negociação diária com a diretoria da emissora. Muitos programas ruins e documentários estrangeiros eram reprisados para cobrir os espaços: "A gente só mudava o nome dos episódios...a libélula e o gafanhoto foram reprisados dezenas de vezes."

Para Coutinho a grande questão era mesmo as brechas. Antes de se ter criado um padrão estético-político para a TV brasileira foi possível que se experimentasse. "Quando, nos anos 80, o modelo do Globo Repórter passa a ser o 60 Minutes da TV norte-americana, a figura do repórter herói entra em cena e passa a minar o trabalho dos cineastas."

Ao se abrandar a censura, os pedidos de veto partindo da própria emissora começam a ser cada vez mais comuns. Finalmente em 1983 é decretado o fim do modelo autoral do programa para dar lugar a um projeto muito maior: interligação estética e temática entre os 3 núcleos de jornalismo da Rede Globo. Jornal Nacional, Globo Repórter e Fantástico passavam a ser um só organismo vivo, com a mesma identidade visual, formato e didática.

O cineasta cede de vez seu lugar à prederteminação estética e temática - Coutinho conclui: "Aquilo não era o céu nem o inferno, vivíamos de brechas: o problema hoje é que não há mais brechas na TV brasileira."


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Parte 2: Conclusões possíveis? A TV acuada.

Além de inúmeras histórias anedóticas sobre os dribles na censura, e o dia-a-dia das equipes na lendária casinha no Jardim Botânico, muito se falou sobre uma possível recuperação desse material. Depois de duas horas e meia de debate, era impossível ignorar a necessidade de um aprofundamento sistemático na redescoberta e difusão desses filmes. (Na mostra, o único filmes realmente recuperado foi o episódio Wilsinho da Galiléia, de J.B. de Andrade.)

Hoje, quando a linguagem cristalizada da TV torna-se cada vez mais influente sobre as imagens produzidas para o cinema, torna-se gritante a necessidade de uma observação cuidadosa e crítica desse período.

Enquanto no cinema a linguagem clássico-narrativa cristalizada pelo cinema norte-americano sempre conviveu (ao menos em suas margens) com as experimentações formais; na TV, por seu caráter economicamente monopolizado e por sua inviabilidade técnica de difusão por produtores de menor porte, a linguagem parece injustamente se confundir com o meio:

É necessário que se redimensione o papel direto da influência do meio concreto "televisão" sobre seu uso expressivo-estético. Ao isolar linguagem da TV como um mal inerente ou um bem frutífero do próprio modo de ser daquele meio, estabelecesse o fim das possibilidades libertárias na imagem televisiva. Os padrões de qualidade estéticos na televisão brasileira representam a univocidade política de seus produtores. As limitações de linguagem que ditam o modo de se fazer TV no Brasil são fruto da absurda concentração de poder no que diz respeito à produção e, principalmente, difusão dessas imagens.

Quando uma emissora como a Rede Globo de televisão decreta o fim da autoria e o início de uma política voltada para a imagem coletiva, o que temos é a fusão das velhas pretensões objetivizantes da imagem com um discurso de homogeneização de pensamento que resulta numa verdadeira ditadura estética na televisão brasileira. O "coletivo" Global não é aquele que parte das diversas nuances de uma realidade e se faz como espaço comum de expressões diversas. O "coletivo" Global é o coletivo da visão única, da idéia de que pode haver estética que se torne única e capaz de expressar sem fraturas a realidade de seus objetos: como os espaços diversos duma expressão única.

Rever e repensar a produção cinematográfica desse ciclo áureo do Globo Repórter não significa apenas um movimento de nostalgia de bons tempos, mas um indispensável posicionamento político-estético daqueles que produzem imagens no Brasil diante do discurso unilateral da tv brasileira.

É urgente que nos livremos das armadilhas conceituais que já levaram muitos a condenar o meio televisivo como nocivo ao cinema, como espaço inevitavelmente menor de expressão cultural. Não se trata de combater a televisão, mas de se repensar as estratégias necessárias para sua retomada pela multidão de criadores de imagens relegados a baixar a cabeça diante do poder estético das grandes emissoras.

Quando um programa como o Globo Repórter (da não tão distante década de 70) bate picos de 60 pontos de audiência mesmo sem ser ditado pelos tais "padrões de qualidade coletivos", é hora de se questionar e esquecer o estigma da televisão como um meio economicamente responsável por sua própria limitação estética.

Assistir a esses programas e descobrir naquelas imagens a conjunção perfeita entre a liberdade criativa e o sucesso de público. Redescobrir na TV o espaço de expansão e diversidade alcançado por esse time de grandes diretores brasileiros.

Vivemos hoje uma crise significativa nos padrões de qualidade na TV. Meios de informação, como a internet, tiraram da TV o monopólio informativo das imagens e forçaram as emissoras a se desdobrar em busca de um público massificado. Gritam aos quatro cantos sobre a queda da qualidade da TV aberta e a derrota de seus profissionais ao se render às atrações vulgares, sensacionalistas (como aquele lendário programa da TV Tupi, do qual falava Walter Lima...). A televisão como um modo de produção que se limita esteticamente vai se tornando incapaz de se prover de idéias e imagens cativantes. Espasmos criativos como os reality shows são logo alçados a salvadores da pátria e se multiplicam como coelhos durante as programações diárias.

O que se percebe, porém, é que não estará nesse novo paradigma de realidade espetacularizada, a salvação de um meio que precisa se abrir para respirar. Sufocada em sua própria abóboda asséptica de "qualidade", a tv brasileira (especialmente a TV Globo) se debate incapaz de ir além de seus bons modos, de sua pesada identidade.

Somente ignorando em parte o que se sabe sobre a TV, driblando os vícios desse monstro acuado e estéril, será possível uma revitalização efetiva do meio televisivo e de suas imagens como expressão cultural única.

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"Saber lidar com a falta de liberdade, lutar e saber manter algumas brechas é a verdadeira ação política que se pode ter...ainda hoje." (Eduardo Coutinho)

Felipe Bragança

ps: Para informações gerais, o site oficial do É tudo Verdade traz entrevistas com os cineastas que estiveram presentes no debate realizado em São Paulo.