Se o Homem-Aranha é um marco nas histórias em quadrinhos, é porque ele foi um dos primeiros grandes heróis atormentados e, principalmente, o primeiro herói adolescente. De certa forma, o desengonçado Peter Parker representou o processo da puberdade, um terrível estágio da vida em que o corpo da pessoa começa a tomar caminhos inesperados, expulsando gosmas estranhas (não exatamente teias) e forçando responsabilidades e sentimentos novos. Enfim, todo um processo de consciência física e espiritual, a criação de uma identidade (“A partir de agora, você irá escolher o homem que vai ser pelo resto da vida”). Homem-Aranha é uma fábula, levemente inspirada em Andersen, aqui o Patinho feio se transformando numa fantástica e ágil aranha. Quem se lembra da idade de ouro dos quadrinhos, quem já leu um Fantasma ou um Batman do fim dos anos sessenta, provavelmente percebe essa mudança de tom, essa, digamos assim, interatividade, essa capacidade de identificação. Um Fantasma de outrora era essa figura inatingível, era algo próximo de um Deus, que comandava e tomava as decisões. Idem para o multi-milionário Bruce Wayne, um pai dos pobres, um paternalista, se a palavra não é muito forte. Quem procurava seus quadrinhos, procurava um pai. Mas quem procura o garoto pobre Peter Parker, procura algo mais próximo de um irmão, um semelhante. Enfim, um garoto que quer e pode vencer sozinho. Que se diga, então, que uma produção nunca teve um público tão identificado; as sombrias dúvidas juvenis deviam estar no briefing do “projeto Spiderman”, e os altos executivos, certamente ajudados por publicitários e psicólogos, cuidaram dos mínimos detalhes. Os teenagers mandam: não há cena que não pareça preciosamente moldada para eles, com todos os símbolos, fetiches, angústias e desejos se cruzando num espetáculo pirotécnico. E essa tentativa desesperada de conquistar seu público é na verdade o grande problema de Homem-Aranha. Por mais que o garoto Tobey Maguire seja talentoso e carismático, tudo no filme parece calculado, inclusive a direção artificial de Sam Raimi, grande cineasta que dessa vez não conseguiu realizar um trabalho pessoal. Artesão que sempre conseguiu casar cinema virtuose e fundamento, ele que já mostrou, em filmes como Rápida e Mortal, que artifícios pós-modernos e grandes efeitos visuais não impedem um diretor de contar uma história e de apresentar personagens consistentes, parece resignado com a redução total de seu talento. Provavelmente motivado pela perspectiva de um primeiro grande sucesso comercial, Raimi se contenta aqui, com efeito, pelo efeito, o espetáculo pelo espetáculo. Nada do experimentalismo demente de um A Morte do Demônio (Evil Dead). As cenas do Homem-Aranha sobrevoando Nova Iorque parecem mais um videogame irritante, dando mais dor de cabeça do que emoção - não é mais cinema, é Playstation (há, na verdade, uma cena interessante entre todas elas, um travelling circular no herói que consegue transmitir toda emoção na sua dúvida de lançar ou não lançar a teia no prédio). As lutas, inclusive, não apresentam interesse algum de mise-en-scène, o que é uma decepção considerável partindo de um autor que já soube explorar tão bem um cinema físico como em Evil Dead 2 (um cruzamento delirante entre comédia pastelão burlesca e terror gore). Os personagens, também, soam estereotipados, como uma tia May sonsa ou uma Mary Jane bonitinha, mas ordinária. Frases como “pai, não posso chegar de limusine, aqui é uma escola pública” transmitem bem o espírito simplista do roteiro e dos diálogos (menos mal pela atuação moderna e minimalista de Maguire e a maravilhosa ironia de William Dafoe). Sugada pelo mercantilismo devastador dos produtores, até a música de Danny Elfman, o melhor compositor de trilhas americano em atividade, sofre o golpe, sendo que uma comparação inevitável com Batman, o retorno (Batman Returns) pode ser feita. Lançado há exatamente dez anos atrás, o filme de Tim Burton, que era uma espécie de ópera grotesca, com personagens depressivos e sombrios identificados a cantores em cena, provou que é possível subverter todo um sistema operando de dentro dele e permitiu a Elfman seu até agora melhor trabalho (junto com o de Good Will Hunt). Ainda se sente um pouco da categoria do compositor, as influências de Prokofiev e de Hermann, mas aqui Elfman é, como Raimi, apenas um criador de melodias épicas que soam como sub-Elfman. É pirataria por si mesmo. Mas, enfim, se os adolescentes e o público em geral saíram decepcionados pela obscuridade de Batman, o retorno, não é o caso de Homem-Aranha. Vale lembrar que todos os gordinhos cheios de pipocas e os casaizinhos com roupinhas de grife que lotaram as salas de Shopping saíram realmente eufóricos, prontos para consumir mais um espetáculo – e depois jogar fora. Ah, e prontos também para devorar um McSpider, ou um SpiderBurger, que seja. Bolívar Torres
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