Rocha Que Voa,
de Eryk Rocha


Rocha Que Voa, Brasil, 2002

O risco era grande. Não bastasse ser filho do maior mito do cinema brasileiro, a temática de seu primeiro filme de longa-metragem não é outra senão o percurso do próprio pai. O circuito, quase automático, arrisca surgir: a velha ladainha sobre Glauber Rocha como a encarnação mitológica do cinema no Brasil e no Terceiro Mundo, um superego que já valeu (e ainda vale) a denominação de "viúva de Glauber" a todos aqueles que, de alguma forma, parasitam ou de alguma forma trabalham majoritariamente em torno da obra do cineasta baiano. Um filho de Glauber copiar o pai seria mais legítimo? Em todo caso, essa pergunta nem chega a ser respondida simplesmente por não ser necessária. Eryk Rocha faz a aposta e ganha: seu filme, por mais que tenha audio do pai, por mais que contenha trechos de filmes do pai, não se parece nada com Glauber Rocha. Antes, remeteria a outro mito do cinema brasileiro, Mário Peixoto (pelos grafismos poéticos e pelas figuras recorrentes do céu e da água).

A idéia de Rocha Que Voa não é sem interesse: aproveitar um generoso arquivo de entrevistas e depoimentos de Glauber Rocha em Cuba para compor um mosaico do pensamento do cineasta. Surpresa: não se trata, de forma alguma, de utilizar a figura-Glauber para falar sempre a mesma coisa que conhecemos (a importância da cultura brasileira, o cinema novo, a democracia, o terceiro mundo...), mas acima de tudo um retrato em profundidade, onde o militante não existe sem o confessional, onde a vida pública não pode existir sem a pessoal, e onde o discurso tornado dogmático e monolítico nas bocas dos falsos herdeiros se torna precário e circunstancial. Glauber sai da história para entrar na vida. Sai do mito para voltar a ter carne.

Se Rocha Que Voa consegue refazer a imagem de Glauber Rocha ou, ao menos adicionar uma faceta esquecida (embora plenamente encontrável nos documentos disponíveis), do ponto de vista da estrutura do filme algo deixa a desejar. Baseando-se exclusivamente o roteiro nos depoimentos de e sobre Gluaber (entre os quais um magnífico testemunho sobre a sincronização da imagem com o som, feita por Paulo García), a parte de imagem do filme fica muito presa, à mercê do áudio. Falou-se em "radiofônico" a propósito do filme, o que, se não é algo muito polido ou apropriado de se dizer numa crítica, é um comentário espirituoso – e, sob certo aspecto, a fissura entre som e imagem é o que de fato produz uma certa sensação de que "falta algo" ao fim da projeção. Não que seja mal-cuidada: a imagem no filme é bonita, misturando majoritariamente trechos de clássicos da cinematografia latino-americana (os filmes de Glauber incluídos) com tomadas documentais ou poéticas retrabalhadas eletronicamente para atingir texturas que de fato são interessantes. Mas, do ponto de vista da imagem, tudo que vemos em Rocha Que Voa não consegue se aproximar em nada da polifonia de sons e idéias que circulam pela banda sonora do filme. Trata-se, sem dúvida, de um documento de suma importância para pesquisadores (o que constitui, todavia, um número ínfimo do público de um filme, mesmo um documentário) e de relativo interesse para o público geral, um interesse que só cresce à medida que que o interesse do espectador por aspectos políticos e cinematográficos do terceiro-mundo. Em qualquer situação, com qualquer público, no entanto, o filme podia furtar-se de ganhar o epíteto "um filme para os ouvidos". Não chegou lá.

Ruy Gardnier