Memória de Helena, de David Neves

Brasil, 1969


Rosa Maria Penna em Memória de Helena de David Neves

Delicadeza é talvez a palavra que melhor traduz o longa-metragem de estréia de David Neves, Memória de Helena, realizado em 1968/69. Mas ela pode ser também estendida a toda a atuação de David Neves no cinema brasileiro, seja como crítico, seja como diretor ou "diplomata" bissexto. Seu primeiro curta, Mauro, Humberto (1967), já exprimia esta conjunção feliz entre o observador, o cronista e o criador. A generosidade deste pequeno documentário não está tanto nas imagens, mas no silêncio entre elas, naquilo que efetivamente não foi filmado, neste quase pudor em apontar a câmera para o mestre Humberto Mauro, o que é fruto tanto da escassez de negativo quanto de um entendimento respeitoso do cinema como instrumento de captura de trechos do tempo, da vida.
Memória de Helena, que foi definido por David Neves como uma "falsa ficção", obedece a este rigor poético e, realmente, parece ter nascido mais de uma postura documental do que ficcional. Mas isso pouco importa. A tônica de Memória de Helena é justamente a mescla de diversas tonalidades estilísticas num resultado que surpreende pela sua unidade.

Gostaria, no entanto, de falar um pouco mais sobre a "delicadeza" a que me referi acima. Não tenho informações precisas, mas acredito que, em sua época, Memória de Helena tenha sido de certa forma subestimado por seus contemporâneos. Seu lirismo, seu intimismo excessivo, sua recusa ao épico e ao didático, devem tê-lo reservado à categoria dos filmes "menores" do cinema novo, isto é, sem o brilho agressivo das demais obras que buscavam um diagnóstico dramático do país. E, de fato, Memória de Helena é um filme que se deixa ofuscar, que parece escolher a penumbra já que todos disputam o sol. É como se David Neves, por opção inspirada, ocupasse justamente a zona menos privilegiada do olhar cinemanovista, o seu lado então mais desprezado, tão secreto quanto um diário adolescente.

Esta "recusa" não deixa de ser, por outro lado, um comentário extremamente irônico sobre a própria crise que o cinema novo passaria a vivenciar a partir de 1969. O que torna Memória de Helena um filme original é que esta ironia não se traduz em um discurso político (como em Fome de Amor, de Nelson Pereira dos Santos) ou na feroz ruptura do cinema experimental. O aspecto mais interessante da delicadeza passa exatamente por aí: David Neves realiza Memória de Helena como um cronista que observa a sua geração, ou melhor, que observa seus amigos, ou melhor, que ama seus amigos, os filmes de seus amigos e o passado do cinema brasileiro (passado "eleito" pelo cinema novo, ou seja, Humberto Mauro). Por isso a ironia generosa de Memória de Helena: "a genialidade é uma grande besteira; viva a rapaziada", parece dizer David Neves, com um sorriso franco.

Para ilustrar um pouco estes comentários, bastaria lembrar das seqüências inicial e final que introduzem/encerram a aventura íntima do universo de Helena (interpretada por Rosa Maria Penna) e de seus (poucos) amigos. Memória de Helena é inteiramente pontuado pelos filminhos caseiros de Helena, espécies de diários audiovisuais recuperados por Renato (Arduíno Colasanti) e Rosa (Adriana Prieto), seus amigos mais próximos. Estes filminhos em preto e branco são filhos legítimos de um casamento entre Humberto Mauro e o cinema verdade (tendência que deu ao cinema novo obras como Integração Racial/Saraceni e Maioria Absoluta/Hirszman), e, no filme, funcionam poeticamente como textos escritos a mão, como um diário, o diário de Helena (por sua vez, inspirado nos próprios diários de Rosa Maria Penna).

E o que mostram esses filminhos? As paisagens de Diamantina em redor da casa de Helena, os gatos, as galinhas, mas também as empregadas da casa (em especial Inês, interpretada por Áurea Campos). Na seqüência de abertura, vemos alguns trechos de rostos de camponeses, de gente da roça, flagrados como num documentário-verdade, mas que já fazem parte destes filmes caseiros. Esta introdução é embalada por uma peça musical bem leve que faz lembrar som de realejo ou certos climas dos antigos filmes de Jean Renoir, e não há os tradicionais letreiros de ficha técnica. A equipe é apresentada por uma narração feminina em off, e as únicas cartelas dão conta do título e de uma espécie de subtítulo explicativo: "Um filme sentimental".

Ao fim, quando se encerra a viagem pelo universo de Helena, Renato e Rosa se beijam na cama e a mesma narradora conclui: "Acabamos de apresentar Memória de Helena. O filme termina como uma missão anti-moral, para usar uma expressão de Helena, que vem mostrar que a vida de Renato e de Rosa continuam". A imagem final é um close de Helena, num dos filminhos em P&B, fazendo carinho em um gato e sorrindo com doçura. Como não deixar de ver aí uma resposta absolutamente desconcertante ao final de Maioria Absoluta (1964) de Leon Hirszman, no qual a voz off do narrador (a "voz do saber", segundo Bernardet), volta-se para o espectador e o intima: "O filme acaba aqui. Lá fora, a tua vida, como a destes homens, continua."?

Evidentemente, não se trata aqui de um confronto entre concepções cinematográfica díspares (é bom lembrar que David Neves foi o diretor de produção de Maioria Absoluta e um dos principais defensores do cinema direto no Brasil). Há, na verdade, nesta irônica conclusão de Memória de Helena, um certo tom pessimista, que reflete a diluição do discurso cinemanovista e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de sua superação. Nem o radicalismo experimental, nem o diálogo com a indústria: Memória de Helena é o testemunho de uma alma e de um cinema entre o conformismo e a ousadia de um descompromisso dogmático. Um filme, enfim, sem espaço naquele período.

David Neves assume este deslocamento. A certa altura, Helena vai ao cinema com Rosa assistir a O Evangelho Segundo S. Mateus, de Pasolini. Na porta do cinema, o cartaz informa: "um filme cristão feito por um comunista". Mas do filme, as duas amigas retêm e celebram uma apolítica imagem de Salomé dançando, da mesma forma que Helena elege o louva-deus como símbolo da superioridade feminina. Da realidade, o olhar feminino (sensivelmente incorporado por David) extrai detalhes quase sempre incomuns. O cinema e Helena aqui se fundem: ambos operam por escolhas e eliminações radicais. É desta forma que David Neves filma a visita de Helena ao Rio de Janeiro: embora Renato a leve para o Pão de Açúcar e o Corcovado, a câmera de David Drew Zingg recusa-se a enquadrar planos turísticos. E Renato reclama de Helena: "Parece que você vem ao Rio todo dia". Em vez de mostrar paisagens, a câmera se mete em um táxi e filma Helena e Renato, que mostra um prédio fora de campo, dizendo: "eu morei ali". De maneira extremamente sutil, o filme traduz a personagem: a experiência interior é sempre a determinante.

Helena recusa o contato com o mundo exterior, não por temê-lo mas por já possui-lo em demasia dentro de si mesma. Nem o diário, nem os filmezinhos, nem os passeios com Inês conseguem diminuir a intensidade de seu relacionamento com a realidade. Por isso a terrível tortura da escolha: é este o verdadeiro drama de Helena. Ela não sabe como agir, não sabe como ser livre. No amor, oscila entre Renato e Rosa. Mas será André (Joel Barcellos), um personagem completamente deslocado do provincianismo que cerca Helena, quem irá tirá-la deste inverno adolescente. André chega a Diamantina num táxi aéreo com frases deste tipo: "Se uma mulher tem uma idéia, é porque alguém a colocou dentro da sua cabeça".

Memória de Helena é também um poema sobre a perda da inocência. A entrega de Helena a André é belamente simbolizada pela entrega de Helena à própria natureza que a circunda - ou, poderíamos dizer, ao tão temido mundo exterior. Neste sentido, uma das mais significativas seqüências do filme opõe, justamente, o interior e o exterior. De dentro de sua casa, Helena olha para a janela. Do lado de fora, como num delírio, ela enxerga as pessoas que tiveram mais importância em sua vida: todas passam e, de alguma forma, olham ou acenam para Helena. Este jogo de olhares, montado com maestria por João Ramiro Mello, a simplicidade dos enquadramentos e a significação desta seqüência para o final do filme fazem deste um dos mais precisosos momentos da filmografia de David Neves.

Há ainda as imagens em P&B de Rosa e Helena, que instauram uma cumplicidade misteriosa, carregada de um erotismo contido, que curiosamente antecipam e fazem lembrar as cenas da dupla Márcia Rodrigues e Renata Sorrah em Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Júlio Bressane - evidentemente, sem a agressividade cortante e original deste filme (vale lembrar que Bressane foi co-produtor, com David Neves e Júlio Graber, de Memória de Helena).

Talvez o filme seja mais apaixonante que a personagem-título (um erro?), mas ainda assim, a "frieza" proveniente de Helena é bastante coerente. É difícil descobri-la, tê-la claramente; sua lógica é obscura. O filme também não é inteiramente acessível ou consumível. Tal como Renato e Rosa, que só passam a entender Helena com o tempo, revendo seus filmes e relendo seu diário, também nós espectadores assim nos relacionamos com Memória de Helena, um filme íntimo, particular e sentimental, que só aos poucos nos oferece os olhos e o sorriso.

Luís Alberto Rocha Melo