Névoas, sombras e estranhamento - as phantasmagorias sob a óptica do romantismo

Parte IV
Ópio, vinho e haxixe

Antes de passarmos as considerações sobre as possíveis representações das fantasmagorias óticas na literatura romântica, confrontando documentos jornalísticos, memórias com a produção ficcional e poética do período, faz-se necessário um rápido adendo que possibilitará uma maior inserção no imaginário romântico, ou melhor, nas motivações deflagradoras deste imaginário. As visões distorcidas e as sensações evocadas nas obras românticas devem muito de seu corpo ao estado propiciado pelo efeitos de drogas, o que, de uma certa forma, pode confundir a identificação e comprometê-la.

Thomas de Quincey em seu livro Confissões de um Comedor de Ópio, em 1817, assim descreveu as alucinações causadas pelas dores da dependência

"A primeira vez que eu notei que alguma coisa importante estava acontecendo com minha economia física foi como num estado de visão que geralmente ocorre na infância. Não sei se todos os meus leitores sabem que as crianças, na sua maioria, tem o poder de pintar na escuridão todos os tipos de fantasmas"

Este poder conferido a quem revive a infância, onde a imaginação transcende as possibilidades do real, no adulto narcotizado, traz de volta o medo das criaturas impregnadas de pesadelo:

"(...) e, através de um processo mais ou menos inevitável, uma vez traçadas em cores desmaiadas e visionárias, como por uma tinta mágica, elas então ganhavam, por alguma química aterradora de meus sonhos, um insuperável esplendor que desgastava meu coração."

Cinqüenta anos depois deste relato, Charles Baudelaire presta sua homenagem ao maldito inglês em seu livro "Um Comedor de Ópio", onde analisa criticamente as Confissões, resgatando a vida e a genialidade do escritor em palavras comoventes, as quais não seriam escutadas por De Quincey, que, à época da produção do texto, morre em Edimburgo com setenta e cinco anos. A admiração de Baudelaire pelo escritor deve-se não somente pelo humor refinado de seus textos, pela marginalidade a que foi relegado o autor de "Do Assassinato Como Uma das Mais Belas Artes". Segundo Paolo Guzzi, "antes de mais nada, ambos apreciam o ópio enquando droga que induz à clareza mental, aguça a potencialidade da genialidade, estimula o sonho e as fantasmagorias cultas."

Porém, o ópio não foi a única droga experimentada por Baudelaire. Em 1860, no seu livro Paraísos Artificiais, a primeira parte toda é dedicada aos efeitos do vinho e do haxixe no organismo. Na busca quase insana por novos estímulos à imaginação, o poeta descia até o inferno para trazer ao público a calda espessa de seu verbo, cheia das novidades que a gustação dos frutos proibidos, só a ele reveladas, deixavam entrever em seu semblante misterioso àqueles que abdicavam da prova do haxixe e das suas visões e sensações extraordinárias.

"O que se sente? O que se vê? Coisas maravilhosas, não é? Espetáculos extraordinários? É muito bonito? Muito terrível? Muito perigoso?- Essas são as perguntas comuns que fazem, um misto de curiosidade e temor, os ignorantes aos adeptos. Parece uma impaciência infantil para saber, como a das pessoas que nunca saíram do quintal das suas casas quando estão na frente de um homem que está voltando de países longínquos. Imaginam a embriaguez do haxixe como um país prodigioso, um vasto teatro de prestidigitação e mágicas onde tudo é miraculoso e imprevisto."

O capítulo do texto onde o poeta descreve pormenorizadamente todas as visões e sensações provocadas pela ingestão da droga, chama-se, curiosamente, "Theatre de Sèraphin". Para Baudelaire, as fantasmagorias produzidas pelo haxixe eram similares as encenadas no famoso teatro de sombras chineses localizado no Boulevard Montmartre, cujas exibições tiveram um grande êxito antes da revolução e forneceriam as diretrizes para que Robertson e Phillidor desenvolvessem seu aparato fantasmagórico no final do século XVIII.

Guilherme Sarmiento

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1. De Quincey, Thomas. Confissões de um comedor de ópio. RJ. Ed L&PM Pocket. Pp. 126-128

2.BAUDELAIRE, Charles. Um Comedor de Ópio in Clássicos Econômicos Newton, Rio de Janeiro; p10