Névoas, sombras e estranhamento - as phantasmagorias sob a óptica do romantismo

Parte III
Fantasmas do mundo

Castro Alves, a bordo do navio que o levaria do Rio de Janeiro para Salvador, em 1869, começou a conceber a idéia de um novo livro. Chegando na Bahia, isolou-se na Fazenda Santa Isabel em Rosário do Orobó para escrever o que seria o seu testamento, o "Espumas Fluctuantes" , livro que de uma certa forma, pela variedade de assuntos, resumia toda a sua obra caracterizada por fases bem distintas, marcadas por várias facetas do romantismo. Uma das poesias que compõe o livro chama-se "Anjos da Meia-Noite".

Quando a insônia, qual lívido vampiro
Como o arcanjo da guarda do sepulcro,
Vela à noite por nós
E Banha-se em suor o travesseiro
E além geme nas francas do pinheiro
Da brisa, a longa voz...

Quando sangrenta, a luz do alambrado
Estala, cresce, espira, após ressurge
Como uma alma a penar,
E canta aos guizos rubros da loucura
A febre- a meretriz da sepultura-
A rir e a soluçar...


Quando tudo vascila e se evapora,
Muda e se anima, vive e se transforma,
Cambeia e se esvai
E da sala na mágica penumbra
Um mundo em trevas rápido se obumbra
E outro das trevas sai

Então...nos brancos mantos, que arregaçam
Da meia-noite os anjos alvos passam
Em longa procissão!
E eu murmuro ao fitá-los assombrado:
São os anjos de amor do meu passado
Que desfilando vão...

Almas, que um dia no meu peito ardente
Derramaste dos sonhos a semente
Mulheres, que eu amei!
Anjos louros do céu! Virgens serenas!
Madonas, Querubins ou madalenas!
Surgi! Aparecei!

Vinde fantasmas! Eu vos amo ainda;
Acorde-se a harmonia à noite infinda
Ao roto bandolim...

E no éter, que em notas se perfuma
As visões s'alteando uma por uma,
Vão desfilando assim!...

Após o espectral prólogo, o poeta, em oito movimentos, descreve com ritmo e com voluptuosa atmosfera as nove sombras inspiradoras de sua paixão: Marieta, Bárbara, Ester, Fabíola, Cândida e Laura, Dulce e uma última cujo nome só será pronunciado ao final do oitavo e último soneto.

Quem és tu? Quem és tu?- És minha sorte!
És talvez o ideal que est'alma espera!
És a glória, talvez! Talvez a morte!...

A.Peixoto em seus comentários sobre o poema, conseguiu identificar os outros oito fantasmas que supostamente foram os inspiradores de "Os Anjos da Meia Noite", inclusive, descobrindo a verdadeira identidade de Fabíola, que na realidade, pelas pistas que o poema fornece, seria Eugênia Câmara, atriz portuguesa por quem Castro Alves apaixonou-se no final da vida. Pedro Calmon , na sua interpretação, refere-se as enfermeiras que dele cuidaram na época em que ficou internado no Rio de Janeiro, como a fonte de inspiração para o lúgubre e ardente poema.

Para um rapaz de vinte e dois anos, Castro Alves já possuía experiência o bastante para deixar aos críticos, aos leitores, material vasto para conjeturas e especulações a respeito das musas que inspiraram sua obra. Relendo a poesia sob uma ótica um pouco mais distanciada, o prólogo e os oito sonetos podem indicar a existência de mais um fantasma que o tempo deixou confundir, não só pela distância, mas também pela falta de importância dada a suas representações. O poema, principalmente sua introdução, tem a atmosfera peculiar que este ensaio rastreia: temos a impressão de estarmos diante de um relato de alguém que assistiu a uma exibição de fantasmagorias.

Quando tudo vascila e se evapora,
Muda e se anima, vive e se transforma,
Cambeia e se esvai

As mesmas impressões que guardam o espanto quase infantil de alguém que foi colocado diante delas

E da sala na mágica penumbra
Um mundo em trevas rápido se obumbra
E outro das trevas sai

***


As lanternas mágicas, que podem ser consideradas como fantasmagorias, existiam no ocidente desde 1659, quando um professor de medicina chamado Christian Huygens, inventou-a com o intuito de ilustrar suas aulas de anatomia. Castro Alves escreveu "Anjos da Meia Noite" em 1870, na época em que estes projetores já haviam sido popularizados, a ponto de serem exibidos em lugares não muito recomendados como Vaudevilles, circos e feiras populares. Robertson e Phillidor, há mais de cinco anos exibiam suas fantasmagorias na França, obtendo com o tempo, certa notoriedade, influenciando outras iniciativas pelo mundo. Muitas exibições particulares, muitas secretas, também foram feitas sem a cobrança de ingresso. Em casa com a família reunida, em clubes, em maçonarias, mas os indícios que poderiam indicar sua presença, pelo menos aqui no Brasil, são escassos e incompletos. "É lógico que não esperávamos encontrá-los na quantidade que Jorge Sadou, Lewis Jacobs, Jean Mithy, Jacques Deslandes e outros obtiveram em relação a Europa e os EEUU," conclui Máximo Barro, ao tentar levantar estatísticas "Mas mesmo levando em conta a disparidade vivencial entre São Paulo e aquelas regiões, julgamos parcas as referências, e o aparecimento do cinema, veremos, deveu-se mais ao acaso que determinantes históricos ."

Os motivos para isso são inúmeros, mas mesmo que oferecêssemos prova convincente de que o poeta baiano porventura, em São Paulo ou no Rio de Janeiro do Oitocentos, tivesse assistido a uma fantasmagoria ótica, seria difícil uma prova suficientemente cabal das influência destas visões em sua obra. Isto porque no movimento artístico denominado Romantismo, as influências, intercâmbios estilísticos entre os autores eram grandes, o maior visto até então, dado a reprodutibilidade dos livros em larga escala, criando uma rede sustentada pelo conhecimento, quando o número de leitores começou a aumentar sobretudo numa Europa a caminho da revolução industrial "A partir da Segunda metade do século XVIII, o livro foi considerado, conseqüentemente, como produto cultural, o mercado se orientou pela transição da então dominante economia de troca para a circulação de moeda , de acordo com os princípios capitalistas. A tendência provinha de Leipzig e de livreiros do norte da Alemanha para a produção estritamente voltada para a venda, levando a uma nova procura de mercado e a novas formas de publicidade" . No Brasil destacava-se no Rio de janeiro as tipografias Garnier e Laemmert, na Rua do Ouvidor, que editavam "brochuras" populares, responsáveis, em parte, pela divulgação dos grandes nomes do romantismo entre a juventude universitária.

Favorecidos por este frisson em torno do livro, Carlyle, Byron, Hugo, Hoffman, Poe, Shelley eram presenças constantes nas conversas, nos saraus literários que nasciam a partir de qualquer reunião, em qualquer taberna do Brasil ou de qualquer lugar do Ocidente. São pródigos os exemplos de fantasmagorias literárias da época que poderiam ter influenciado a verve espectral de nosso poeta. Victor Hugo, na tradução feita por Machado de Assis, em 1866, em um parágrafo de Trabalhadores do Mar, descrevendo uma casa abandonada :

"O espaço vai redemoinhar ali? O impalpável vai ali condensar-se? Enigmas. Sai daquelas pedras o horror sagrado. A treva que está nesses quartos defesos é mais do que treva, é o desconhecido. Depois do sol posto voltam barcos de pescadores para a terra, calam-se os pássaros, o cabreiro que está atrás do rochedo vai-se com suas cabras, as fendas das pedras darão passagens aos répteis mais animados; as estrelas começarão a olhar, soprará o vento; far-se-á plena a escuridão, as duas janelas estarão ali escancaradas. Abrem-se para o sonho; e é por aparições, larvas, fantasmas mal distintos, sombras cobrindo luzes, misteriosos tumultos de almas e espectros, que a crença popular estúpida e prufunda, traduz as sombrias intimidades daquela casa com a noite."

Apesar de não termos registro do conhecimento de Castro Alves do citado romance, sabemos o quanto ele foi influenciado pelos mestres franceses, sobretudo Hugo, cuja admiração deixou-se revelar pelas constantes citações nominais que encontramos em sua poesia, o tom épico de seus versos e as traduções de poemas como "A Olímpio", dentre outros, o que já pressupõe o grau de intimidade com as obras do grande escritor francês. A própria poesia "O Anjo da Meia Noite", tem sua origem na peça homônima de Théodore Barrière e Edmond Plovier, levada a cena em 1866, numa récita de gala assistida pelo poeta, com Eugênia Câmara no elenco. Desvendar o que Castro Alves escreveu, portanto, é antes, descrever o que se forjava no mundo naquele momento, o mundo que vinha da Europa, sobretudo da França.


***

Os fantasmas, os espectros, as visões eram um dos assuntos preferidos dos românticos europeus, mas não foi uma exclusividade do movimento. Mesmo antes, eles se faziam lidos através de muitos autores, entre os quais Daniel Defoe, jornalista e escritor inglês que em 1704 já editava em seu jornal The Review, contos de fantasmas e praticamente inaugurava um filão que adquiriria muitos adeptos. Seu livro, editado depois com a compilação dos contos, foi dividido em duas partes: História Verdadeira de Fantasmas e Fantasmas Falsos e Aventuras Divertidas.

Pela verdade contida na primeira parte, Defoe colocava em risco sua reputação e a das pessoas envolvidas na macabra ocorrência "Este relato é verdadeiro e cercado por muitas circunstâncias que podem induzir a qualquer homem sensato a acreditar nele." , abre o primeiro conto, A Aparição da Senhora Veal "Foi enviado por um cavalheiro, um juiz de paz em Maidstone, no Kent, e pessoa de muita inteligência, a um amigo seu em Londres, tal como está aqui redigido. O texto é certificado por uma dama parente do citado juiz da paz e que é pessoa de mente sóbria e de grande compreensão , a qual vive em Catenbury, a umas poucas portas da casa da senhora Bargrave, nomeada no relato." Apesar da aparente troça com o leitor que logo a divisão do livro já adianta com o seu jogo de verdades, Defoe consegue manter a seriedade e compõe uma atmosfera própria aos fantasmas.

Talvez o espectro mais célebre da história da literatura esteja em Hamlet , escrito por William Shakespeare em 1603: o rei da Dinamarca, assassinado por Cláudio, seu próprio irmão e pela rainha, Gertrudes em concubinato. O fantasma do rei, à meia noite, assombra os sentinelas na esplanada do castelo:

Horácio
Detém-te e fala! Intimo-te!

(Sai o espectro)

Marcelo
Foi-se sem dizer nada.

Bernardo
Então, Horácio?
Assim, tremendo e pálido...
Não é mais do que simples fantasia?
Que pensais de tudo isso?

Horácio
Pelo meu Deus, teria duvidado,
Se a verdade sensível não me viesse
Ferir a vista.


Hamlet foi escrito cinqüenta anos antes da invenção da lanterna mágica, o que de uma certa forma, contradiz a tese de que as fantasmagorias óticas seriam a matriz criadora das imagens românticas, das fantasmagorias românticas. São encontrados vários exemplos na literatura pré-romântica de fantasmagorias literárias, cuja existência nada tem a dever aos projetores de fantasmas, entretanto, lendo-se dentro do contexto histórico em que estes se desenvolvem, temos a impressão de que o texto é um registro póstumo da sua existência, uma prova de que Shakespeare também foi tentado por aquelas imagens fantásticas.


(O espectro faz sinal para Hamlet)

Horácio
Faz-vos sinal para irde-vos com ele,
Como pretendesse algo dizer-vos
Sem testemunhas

Marcelo
Vede o gesto cortês com que ele indica
Que em lugar apartado quer falar-vos.
Não deveis temer.

Horácio
De forma alguma.

Hamlet
Assim, não falará; bem, segui-lo-ei.


Admitir que as fantasmagorias óticas seriam a única influência na criação das imagens românticas, sobretudo das ultra-românticas, no primeiro decênio do século XIX, seria menosprezar toda a herança deixada por outras épocas, inclusive a Clássica, que nutriu o parnasianismo já no final do século XIX com sua imagem forjada em mármore, e que forneceu a Shakespeare os arquétipos sobre os quais moldaram-se boa parte dos seus personagens antológicos. Também seria conferir uma importância desmedida a um objeto se eximíssemos dele as influências externas, dizendo que as fantasmagorias óticas teriam agido diretamente na concepção dos fantasmas românticos, a ponto destes deixarem de existir na forma escrita, caso não houvesse o fantascópio existido, mas que a influência do romantismo sobre as imagens projetadas pelo aparelho fosse nula, ou significativamente desprezível. O que percebemos pelos indícios, no entanto, é que os créditos dados ao registro dos fantasmas para a posteridade são quase que exclusividade da literatura que nesta época foi, juntamente com a música, a arte mais admirada pelos jovens, a mais disseminada pela cultura, a que ficou para o futuro, enquanto que as fantasmagorias óticas contentaram-se com esparsos comentários ditos aqui e ali, um anúncio no canto da página dos periódicos, até deixarem de existir definitivamente.

O intercâmbio existente entre as duas formas de expressão manteve a complexidade que toda a relação não simbiótica implica, quando cada coisa forja sua particularidade, apesar de estar aberta ao mundo. Neste caso, seria extremamente desgastante forçar o embate entre um e outro, para desvendar o elo onde se desembaraçaria a influência de um sobre o outro e, assim, poder descobrir qual deles foi o maior responsável pela eclosão dos fantasmas Românticos. Muitos personagens da literatura eram projetados nas sessões de Robertson e cia: Fausto, Werther, imiscuíam-se em meio a duendes e demônios, paisagens e planetas. Muitos romances eram encenados durante as sessões onomatopéicas: Robson Cruzoé, escrito por Daniel Defoe, o mesmo que 100 anos antes escrevera Conto de Fantasmas, era um dos mais apreciados e difundidos nas projeções fantasmagóricas.

Mais do que fazer julgamento de valores, o que importa aqui é a coincidência, a convergência dos fatores que determinarão as similaridades das formas de expressão entre as fantasmagorias literárias e óticas, que se querem somente constatadas, quando muito desenvolvidas dentro de nossos limites, de nosso conhecimento leigo da literatura, da história e do cinema. Quando se fala de fantasmas, há quem acredite ou não; mas quando se fala de fantasmagorias, pode acreditar, um dia elas existiram, por mais incrédulos que estivessem seus depoentes.

Guilherme Sarmiento

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1. Alves, Castro. Obra Completa . 5 ed. RJ: Nova Aguilar, 1986. (notas e variantes por Eugenio Gomes), p 170. "Marieta; Leonídia Fraga. Bárbora, uma hetaira representativa da vida errante de Castro Alves( o nome já estava em Álvares de Azevedo); Ester, Ester Amlazack, a mesma de Hebréia ; Fabíola, Eugênia Câmara; Cândida e Laura, Cândida Campos e Maria Cândida Garcez, que o poeta conheceu quando hóspede de Luís Cornélio dos Santos, em 1869."

2.Calmon, Pedro. "A Vida e Amores de Castro Alves". Ed. A Noite AS. RJ/1935. pp 200
3.Barro, Máximo. A Primeira Sessão de Cinema de São Paulo. Ed Tanz do Brasil. SP, 1996. p 23

4. Withmann, Reinhard. Existe uma Revolução de leitura no Final do SéculoXVIII?in História da Leitura no Mundo Ocidental. Cavallo, Guglielmo/Chartier, Roger. Ed. Ática. SP.1999. p136

5. Hugo, Vítor. Os Trabalhadores do Mar , in Os Imortais da Literatura Universal. Ed Abril; 1971, p119

6. DEFOE, Daniel. Contos de Fantasmas. Porto Alegre: L&PM, 2001 p9

7. SHAKESPEARE, William. Hamleto. Coleção Universidade de Bolso, Rio de janeiro; 1986 pp19-39