Névoas, sombras e estranhamento
- as phantasmagorias sob a óptica do romantismo
Parte
II
A idade dos fantasmas
A existência
de um ciclo de Fantasmagorias na história do entretenimento é
algo indiscutível. Apesar delas terem chegado até nós
com personalidade indefinida, meio experiência científica,
meio espetáculo de prestidigitação, pode-se ter uma
idéia de sua passagem pelo Ocidente através de fontes bastante
diversas. Não se consolidou no tempo como uma arte, mas como uma
etapa esquecida na formação do Cinema, a Sétima Arte
por excelência, esfumando-se no passado como algo quase irreal,
impalpável, deixando rastros sutis de seu trânsito em depoimentos
à boca pequena, ditos na marginalidade, porém, com profundo
e denso estranhamento. Nestes termos, o registro disponível acaba
tendendo mais a generalizações, deixando para trás
diferenças entre os vários aparelhos existentes na época.
Segundo Walter Benjamim "É Fantasmagórico
todo produto cultural que hesita ainda um pouco antes de se tornar mercadoria
pura e simples. Cada inovação técnica que rivaliza
com uma arte antiga assume algum tempo a forma... da fantasmagoria. Os
métodos de construção modernos dão origem
à fantasmagoria das galerias, a fotografia faz nascer a fantasmagoria
dos panoramas...". Seguindo este raciocínio, devemos considerar
fantasmagóricas não somente as Fantasmagorias de Robertson
e Phillidor, mas toda uma série de inventos que nasceram a partir
da lanterna mágica, todos os inumeráveis projetores, máquinas,
inventados com variações mínimas, que seriam fantasmagorizados
pela conseqüência lógica do Cinema Total. Cosmoramas,
Lanternas Mágicas, Fenaquistiscópio, Zootrópio, Praxinoscópio
e uma série de outros inventos que na época sucediam-se
seriam tornados meras sombras do Cinema, suas fantasmagorias.
O Conceito benjaminiano de fantasmagorias, que tem a sua origem na noção
de fetichismo de Marx , valerá se levarmos em
conta que a transitoriedade observada por ele nos objetos fantasmagóricos,
não diminuiu o seu grau de influência no ramo de entretenimento
durante século XIX. A passagem pelo mundo destes projetores de
sombras, hoje esquecida, durou mais de 200 anos(A Lanterna Mágica
foi inventada em 1650) ainda persistindo no início do século
XX em algumas regiões, quando o Cinema já havia se consolidado.
Se considerarmos que o invento do Cinematógrapho completou há
pouco o centenário, esta longevidade das fantasmagorias pode indicar
um vigor pouco usual em espectros e, conseqüentemente, provocar uma
reavaliação da importância destes inventos sobre a
fundação da modernidade. As Fantasmagorias foram
efêmeras, sim, muito embora tenham sido uma arte e um engenho completos,
com todo o seu aparato e mise en scène próprios e
adequados às limitações de seu tempo. Não
devemos investigá-la como um ser incompleto, algo em gestação,
algo que se guarda para o futuro que será do Cinema, mas o que
vive sem outra expectativa além de sua própria existência.
Uma outra coisa deve ser previamente esclarecida, já que estamos
trabalhando em cima de um conceito específico: a sua aplicação
neste caso, ainda que tenha esclarecido um pouco a respeito da natureza
das fantasmagorias, fez com que se perdesse um pouco a identidade física
do aparelho.
Mesmo para os contemporâneos dos projetores de fantasmas, sua identificação
tornava-se difícil, pois a cada pequena peça acrescentada
à lanterna mágica, um novo aparelho era criado e renomeado
ao gosto do inventor. Nomes muitas vezes complicados, difíceis,
com referências a terminologias científicas - a sufixos ópticos,
a prefixos físicos, ou vice e versa - tornavam a sua pronúncia
quase impossível; a rapidez das transformações, por
outro lado, impedia a fixação de uma referência, de
um nome próprio. Em muitos relatos colhidos por esta pesquisa,
as fantasmagorias ali vistas podem ser simplesmente lanternas mágicas
ou um Reflexinoscópio, tendo em vista esta profusão de geringonças
que disputam um espaço na memória.
Para que isso não prejudique a exposição, escolhemos
o Fantascópio para denominar todo o projetor de Fantasmagorias,
pois, além de sua enorme popularidade à época, tem
na expressão do seu nome o reconhecimento de sua própria
condição, o que, de uma certa forma, o coloca como um paradigma
entre os seus. Dos inventos, com certeza, não foi o mais complexo,
porém, em seu aparato simples, refletiu e traduziu com perfeição
as imagens de sua época, como se verá mais adiante. Também
é um dos mais citados nos depoimentos, o que nos dá motivos
suficientes para centralizar nosso estudo no período em que foi
utilizado, que tem início no final do século XVIII e atravessa
todo o século XIX, expirando na virada dos séculos, quando
o Cinematógrapho, então, torna-se soberano.
Deixando para trás pequenas diferenças que não influenciarão
significativamente o objeto de estudo, deixando os simulacros, os elos
perdidos, porque o que nos interessa, mais do que descrever fisicamente
as diferenças entre uma fantasmagoria cinematográfica e
outra, é descrever as sensações que elas causaram
no seu tempo, podemos seguir nossa busca sem medo de fantasmas, sobretudo,
falsos fantasmas.
Guilherme
Sarmiento
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1. BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire, Um Lírico
no Auge do Capitalismo. Obras Escolhidas III 2 ed. São Paulo: Brasiliense.
1991, pp. 62-63.
2.MARX, Kal. O Capital: Crítica da Economia Política.
Vol. 1. 3Ed-SP: Nova Cultural, 1988(Os Economistas)P71 "Assim a impressão
luminosa de uma coisa sobre o nervo ótico não se apresenta
como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas
como forma objetiva de uma coisa fora do olho. Mas, no ato de ver, a luz
se projeta a partir de uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho.
É uma relação física entre coisas físicas.
Porém, a forma mercadoria e a relação de valor dos
produtos de trabalho, na qual ele representa, não tem que ver absolutamente
nada com a sua natureza física e com as relações materiais
que daí se originam. Não é nada mais que determinada
relação social entre os próprios homens que para eles
aqui assumem a forma fnatasmagórica de uma relação
entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos que nos deslocar
para a região nebulosa da religião. Aqui os produtos do cérebro
humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas,
que mantém relações entre si e com os homens."
3. Gogol, escritor russo mais afim com o estilo romântico
europeu, em 1845, em seu conto "O Nariz", assim descreve as muitas
"mágicas" produzidas pelo conhecimento científico
do período "Naquela época todos os espíritos estavam
preparados para quaisquer exageros: havia pouco, estivera o público
preocupado com experiências de magnetismo. Persistia ainda na memória
de todos a história das cadeiras dançantes da rua Koniuchniai,
razão porque ninguém se perturbou quando
apareceu o boato de que o nariz do inspetor geral Kovaliov passeava diariamente
às três horas pela Avenida Niévski. Reuniam-se muitos
curiosos para apreciar o fenômeno." |