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O gesto inaugural de David Neves como diretor já nos dá completa dimensão de seu cinema. Deslumbrado com os fins de semana em que visita a casa do diretor Humberto Mauro, na Tijuca, o jovem David então uma espécie de guardião dos aquipamentos de cinema do Patrimônio Histórico (IPHAN) decide eternizar aqueles momentos de extrema felicidade, misto de reverência por um mestre e amor por um amigo. Sem uma câmera fotográfica, mas dispondo da câmera de cinema do Patrimônio e de algumas sobras de negativo de filmes como Maioria Absoluta ou O Circo, ele filma o diretor de Ganga Bruta em sua casa, com Dona Babe, pelo simples registro, pelo simples gosto de fazê-lo. No começo, nem se tratava de um filme. "Não entrei nisso de cinema. Nada de cinema. Era como se fizesse fotografias... Para um álbum de fotografias"1. A simplicidade, a ingenuidade no registro uma ingenuidade que povoa tudo e parece espantar-se com cada instante da existência humana é o grande elo que reúne todos os filmes de David Neves. Essa abertura para o mundo, essa permissividade plena e cheia de significados do filme inaugural de David Eulálio Neves, o homem, se transformará no principal traço estético de David (E.) Neves, o cineasta. Como não encarar Helena, a mítica personagem da qual Adriana Prieto e Arduíno Colassanti lembram-se ad infinitum em Memória de Helena, como uma doce variação da devoção e do carinho com que o autor antes evocara a figura de Humberto Mauro? Como não ver nas fortes figuras femininas de seus filmes e a filmografia de David está cheia: Helena, Lúcia McCartney, Luz del Fuego, Ítala Nandi em Muito Prazer, Mariana de Moraes em Fulaninha... , sempre contestadoras da posição típica da mulher, sempre ultrapassando em muito a previsibilidade de comportamento em que a cultura masculina dominante quer inseri-las (pensamos claramente em Luz del Fuego obrigando o senador a ficar nu para entrar em sua ilha), como não ver nelas um irromper da natureza que corresponderia, mesmo que longinquamente, às imagens de natureza do cinema de Mauro, da sexualidade de Ganga Bruta à força dos elementos no comportamento das pessoas em O Canto da Saudade? Aliás, se formos pensar num filme que antecipe o cinema íntimo e declaradamente minoritário de David Neves, esse filme é sem dúvida O Canto da Saudade. Mas lá onde Humberto Mauro criava uma estrutura em que sobressaíam as relações de poder controladas pela figura do dono da fazenda (macho, branco, potente, o sujeito-suposto-saber clássico: há poucos filmes mais veladamente reacionários e autoritários do que o último longa de Mauro), David Neves vai construir todo seu cinema às antípodas maurianas: seu cinema é marcadamente feminino e estruturado a partir do objeto ausente ou do objeto faltante: Helena já está morta, não há homem para suprir o desejo (sexual, social, existencial) de Luz del Fuego ou de Ítala Nandi, Fulaninha é uma figura inatingível. Ao contrário de seus confrades no cinema novo, David Neves é o único de sua geração que prefere a parte ao todo, que considera o fragmentário como um objetivo a alcançar. Falou-se em minoritário, fala-se em tom menor: mas é essa leveza na cadência nada contraditoriamente, pois não é nem a escolha do tema nem a grandiloqüência do resultado que faz o cineasta, lição aprendida com Chabrol que faz com que Neves seja um cineasta maior dentro do cinema brasileiro. Questão de estilo. Quando se fala no cinema de David Neves, busca-se freqüentemente a comparação com o cinema de François Truffaut. Mas por aí a busca é infrutífera. De fato, se os dois partilham de um gosto pelo cotidiano e mantêm com seus espectadores uma relação onde a afeição mútua é predominante, nada poderia ser mais afastado do cinema de David Neves do que a narrativa sempre muito clara, a temporalidade sempre muito exata dos filmes de Truffaut. Em Muito Prazer, Luz del Fuego ou Lúcia McCartney, é inútil preocupar-se demais com o tempo que passa. Nunca temos muita certeza se entre duas seqüências passou um dia, uma semana ou um ano. A suspensão temporal, ou melhor, a própria sensação do tempo suspenso é uma das marcas do cinema de David Neves. A esse respeito, ele não faz nada além de ser fiel a seus princípios: para filmar o cotidiano, o íntimo, seria inútil enumerar uma sucessão de acontecimentos ou de plots, de intrigas; o ideal é utilizar uma aglomeração de pequenos gestos, de pequenos encontros imperceptíveis, e juntá-los num amálgama impreciso, embora bastante definido. No fundo, todos os momentos do cotidiano se parecem, todos os momentos íntimos se subtraem ao tempo... Sobre o tempo e sobre o cotidiano, então, uma comparação muito melhor seria com o cinema de Éric Rohmer, como aponta muito espirituosamente Fabiano Canosa quando de uma homenagem a seu amigo David no exterior (ver a seção Documentos dessa mesma edição). De fato, além de estruturar-se a partir das miudezas do cotidiano, o cinema dos dois ainda coincide num ponto significativo: uma verdadeira crença na iluminação natural, na força dos décors naturais e de simples rebatedores para conseguir uma luz simples mas poderosa, disseminada por todo o plano (poucos efeitos de claro-escuro ou contraluz) mas evocativa, sem perder um mínimo de dramaticidade. Mas onde Rohmer ganha na beleza da luz, sobretudo depois que começa a trabalhar com Nestor Almendros, um verdadeiro filósofo da iluminação, David Neves ganha em agilidade e leveza. Ele mesmo fotógrafo, o diretor de Muito Prazer sabe tirar de câmera de seus filmes aquele sentimento de intimidade, de naturalidade que se vê quando se assiste a imagens quaisquer tiradas de um registro familiar, de uma festinha de aniversário ou da filmagem de prosaicos momentos familiares, como uma criança aprendendo a andar. Mais uma vez, volta-se à primeira relação de David Neves com a câmera: os fins-de-semana na casa de Humberto Mauro... Mas que essa simplicidade não se confunda com preguiça, desleixo ou falta de manejo: o cinema de David Neves é como a fórmula de Picasso, que considerava o processo de desaprender a fazer o elaborado e aprender a fazer o simples muito mais difícil do que o próprio processo de aprendizagem em pintura. David Neves tem, entretanto, um grande enigma pairando sobre sua carreira. Vascaíno e sabe-se como a richa em futebol no Rio de Janeiro é acirrada , realizou um filme sobre o tricampeonato do maior rival, o Flamengo. Como que para compensar, diversos de seus filmes estão cheios de citações cruzmaltinas: de uma pichação na parede (Luz del Fuego) até camisa de time e comentários elogiosos ao craque Roberto Dinamite (Muito Prazer). Mesmo que se escalonassem as referências, mesmo que ao contrário jamais assistíssemos qualquer menção ao Gigante da Colina, nada faria crer que David Neves não se tratasse de um verdadeiro "bacalhau". Porque se a sina do Vasco da Gama é lutar sempre, fragmentariamente, contra um inimigo que o suplanta em número de torcedores e em títulos; porque se o Vasco da Gama é o time que está tradicionalmente no registro do minoritário (foi o primeiro time a incorporar negros no elenco, por exemplo), o grande cinema de David Neves, com referências ou sem elas, é autenticamente vascaíno. Com simplicidade, garra e muita categoria. Um craque. Ruy Gardnier
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1. in VIANY, Alex (org. José Carlos Avellar). O Processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999 |