A revolução passou,
o cinema ficou
Teve
lugar recentemente no Rio de Janeiro e em São Paulo, nos dois Centros
Culturais Banco do Brasil, a mostra "Cinema Revolução: A
Produção Russa de 1925 a 1946", constituída de 12
longas do período. Fica meio claro que as datas são bastante
arbitrárias, assim como a curadoria da mostra, que foi muito mais
circunstancial do que qualquer outra coisa: encontrou-se estas 12 cópias
num acervo de filmes, e optou-se por construir um conceito em cima delas.
Por isso, havia filmes menos ou mais interessantes, que obviamente não
esgotavam nem sequer cobriam os principais autores do período.
Nada contra isso, afinal foram de qualquer jeito filmes raros de se ver
nos cinemas, mas há algo sim contra o título da mostra que
pega o particular e parece querer esgotar tema no qual mal resvala. Dentre
todos os trabalhos exibidos, que incluíram Eisenstein, Dovzhenko
e Kosintsev, o que mais chamou a atenção foi a dupla de
filmes de anos consecutivos de Vsevolod Pudovkin, O Fim de São
Petersburgo (1927) e Tempestade sobre a Ásia (1928),
dos quais trataremos aqui.
É
fato mais do que batido a verdadeira revolução da linguagem
que acompanhou o cunho eminentemente político de vários
filmes do período, inclusive de alguns dos ausentes famosos, como
Dziga Vertov. Revolução que mais tradicionalmente é
ligada à noção da montagem em Eisenstein, mas que
passa por vários outros artifícios da linguagem, como o
trabalho de enquadramentos e movimentos de câmera. O outro fator
mais discutido desta produção é a sua filiação
em vários níveis ao projeto da revolução russa
em suas fases iniciais, até o governo de Stalin, onde envereda
pela lógica do realismo socialista. No entanto, para falarmos do
trabalho de Pudovkin, é essencial aprofundarmos alguns pontos ainda
pouco discutidos, que são os que acabam chamando mais a atenção.
A noção
de construção da narrativa, por exemplo, tem sido largamente
ignorada ao falar-se desta produção em geral. Nos dois filmes
de Pudovkin exibidos, um dos mais impressionantes artifícios é
o uso da trama rocambolesca quase melodramática de um personagem
(ou um grupo pequeno) para se construir a partir do micro a noção
da macro-política. Ou seja, mesmo em uma ideologia de cunho coletivista
e comunista, o cineasta já havia percebido que a catarse do espectador
deve passar pela empatia com um personagem específico. E que aí
sim pode-se usá-lo como catalisador do movimento revolucionário.
No primeiro
filme, O Fim de São Petersburgo, o personagem é um
lavrador que se vê obrigado a migrar para a cidade, onde vira primeiro
um desempregado, em seguida um fura-greves, e acaba no exército,
lutando uma guerra sobre a qual nada sabe, até que finalmente chegamos
à revolta do proletariado que culmina com a queda de São
Petersburgo, que viraria Leningrado.
No segundo
filme a trama é ainda mais rocambolesca, e a "odisséia do
herói" especialmente inacreditável. Ele começa também
como um camponês, filho de um velho doente. Num acontecimento típico
do melodrama, circunstâncias o colocam de posse de um objeto que
mais à frente mudará toda a sua vida. Na cidade, ao atacar
um burguês americano, ele acaba perseguido, fugindo para as estepes,
onde salva a vida de um bolchevique, sem nunca nem saber o que são
eles. Acaba preso como comunista sem saber o que está fazendo,
e é condenado ao fuzilamento. Em cima da hora, o tal objeto (um
amuleto) o salva, e ele é coroado príncipe pelos mesmos
homens que o mandaram para a morte, no melhor estilo Os Miseráveis.
Ao perceber que está sendo usado para fazer mal ao seu povo, se
rebela, e com seu novo posto de poder, lidera uma revolta. A utilização
pelo diretor de tramas tão intrincadas revela uma preocupação
com a condução e a atenção do espectador,
mas também serve como pano de fundo para seu principal argumento
que é o de que mesmo o mais comum dos homens pode se mostrar um
líder revolucionário dadas as circunstâncias corretas.
Esta
relação com o ideal revolucionário, diga-se, é
uma das questões mais polêmicas dos filmes do período.
Como é sabido, mesmo Eisenstein que passou a simbolizar o cinema
da revolução, entrou em conflito em dois momentos diferentes
com o partido comunista, uma vez este no poder. A impressão que
fica em vários destes filmes é que eles recebiam o financiamento
e o apoio do Partido, mas que no geral os artistas astutamente (como é
hábito em períodos de controle político sobre a arte)
parecem testar os limites da "propaganda" que fazem. É assim por
exemplo que em Terra de Dovzhenko, ao mesmo tempo em que a injusta
estrutura agrária pré-revolucionária é denunciada,
a chegada da modernização (símbolo dos bolcheviques)
e a massa unida coletivamente pelo socialismo são retratados sutil
mas indelevelmente como algo de profundamente assustador no seu "fanatismo".
Certamente não havia ali nada que os donos do poder pudessem reclamar,
o filme de propaganda está feito, mas quem se dispuser a olhar
com atenção a decupagem, a montagem, percebe claramente
que a adesão é mais contra o que se via antes do que a favor
do novo modelo.
Nos filmes
de Pudovkin se sente também um pouco desta marca. No primeiro,
certamente bem menos, porque O Fim de São Petersburgo tem
momentos que lembram bastante o Outubro de Eisenstein, um dos marcos
do cinema russo do período. Mas, ainda assim, o que se percebe
no cinema de Pudovkin são dois elementos que ultrapassam a simples
marca da revolução comunista por si. Primeiro, ele representa
sempre um profundo senso histórico-social da formação
das estruturas de dominação. Seus filmes são quase
teses de cunho econômico ou político do que seja a formação
de modelos opressores do povo. Sua denúncia é muito mais
destas estruturas de poder opressor (o que certamente nos faz pensar que
o stalinismo seria alvo de seu olhar crítico), do que de um modelo
em si, em troca de outro. Desta característica decorre uma outra
igualmente importante, e que também o coloca senão contrário,
certamente à margem do comunismo tradicionalmente pensado. Seus
filmes possuem um cunho absolutamente humanista, e num certo sentido,
individualista. Ou seja, ao mesmo tempo em que o preocupa a opressão
de classes, ele também está preocupado com as tragédias
pessoais, com o sofrimento individualizado, algo que não seria
o modelo do comunismo russo.
Estas
duas características (o olhar histórico de formação
social e uma preocupação com o indivíduo) certamente
ajudam a explicar porque em 2002 seus filmes parecem absolutamente atuais.
Embora o comunismo tenha se estabelecido, vivido um ciclo e saído
do poder, assim como a noção da União Soviética
como um todo, o cinema de seus melhores diretores permanece. Sempre se
tentou explicar isso pelo uso da linguagem, ou seja, as inovações
estéticas seriam tantas que davam ao cinema da época força
maior até que o regime que apoiava. No entanto, olhando-se com
maior atenção, por exemplo, estes dois filmes de Pudovkin,
precisamos ver que o que ficou deles realmente foi menos o trabalho de
linguagem e mais um olhar de mundo, que ultrapassava então o comunismo,
e por isso resiste até a queda deste.
Como
mencionado, O Fim de São Petersburgo possui uma estrutura
bem mais ligada ao movimento revolucionário, mas ainda assim este
não é o conteúdo principal do trabalho. O que mais
impressiona nele é o retrato das estruturas opressivas em funcionamento
pleno. Quando, por exemplo, ele usa uma montagem paralela para mostrar
soldados morrendo numa guerra que foi criada apenas para "distrair" a
nação como um movimento patriótico, e movimentar
a indústria. Ele mistura cenas de massacre nas trincheiras com
a euforia na Bolsa de Valores, e finalmente culmina com a morte de um
soldado sendo saudada com um "Viva!" dos corretores. Difícil achar
uma cena destas "datada", pois não poderia estar mais atual. Da
mesma forma, é atualíssimo o retrato contundente que ele
faz das estruturas da miséria, da incapacidade de sustento da família
no campo forçando a busca de trabalho na cidade, levando ao excesso
de trabalhadores, que gera a exploração destes pelo empresariado
sabedor da oferta de mão de obra, que leva ao desemprego e aos
conflitos internos entre grevistas e fura-greves (farinhas do mesmo saco).
Ele também demonstra a máquina policial em todo seu trabalho
repressivo, e até mesmo como incitador dos conflitos intra-classe.
No meio
deste painel cuidadosamente traçado, o movimento revolucionário
surge como resposta, não porque seja ele um ideal por si, mas sim
porque algo precisa acontecer que balance esta estrutura perversa. Ou
seja, ele faz menos uma louvação da revolução
do que uma denúncia do que levou a ela. Por isso permanece atual,
pois embora a revolução tenha tomado rumos questionáveis,
os fatores pré-revolucionários continuam todos existindo
pelo mundo: a miséria e a opressão de classes torna o filme
quase um documentário sobre 2002, ainda mais com a inserção
do tema da guerra como movimentador financeiro e distração
patriótica. É especialmente bonito o tratamento que ele
dá às cenas nas trincheiras, especialmente porque ele não
louva um "espírito heróico soviético". Mostra sim
a completa destruição humana, e chega mesmo a encenar o
lado adversário (no caso, alemão), com cenas absolutamente
iguais, deixando claro o valor internacional e extra-fronteiras da denúncia
da guerra que causa a destruição do elo mais fraco da corrente
por motivos espúrios que só interessam aos donos do poder.
Mas,
é em Tempestade sobre a Ásia que mais se pode perceber
um caráter absolutamente extra-Revolução, de ainda
maior atualidade em 2002. O filme é, de fato, uma denúncia
anti-colonialista, um libelo pela briga com as potências imperialistas,
sendo que de uma forma ou de outra, a própria União Soviética
acabaria exercendo um papel semelhante no futuro. Todo o filme é
centrado num personagem da Mongólia, que sequer entende o que lhe
dizem os bolcheviques, ou seja, completamente destituído da ideologia
comunista. Mais ainda: os bolcheviques surgem em cena por menos de 10
minutos de filme, numa inserção tão estranha e sem
sentido, que deixa claro que era algo para satisfazer o Partido. Dá-se
a chance de um personagem fazer um discurso pró-revolução
que, no entanto, encontra-se completamente descontextualizado, tanto assim
que a cena precisa ser apresentada por uma cartela de textos para ser
entendida.
Passada
esta situação, os bolcheviques saem de cena, e nosso herói
em nada tem a marca de um revolucionário tradicional. Mais uma
vez, como no filme anterior, importa menos defender algum modelo, e sim
colocar-se contra o vigente. Só que ao invés da denúncia
do estado econômico-financeiro e da estrutura de classes que oprime
os mais pobres, aqui se discute a questão da influência externa
na economia e política do país. O que pode ser mais atual?
De fato,
há cenas específicas que quase nos fazem crer que o filme
se passa no Afeganistão de 2002, e que Pudovkin era pró-Talibã.
Claro que não é o caso, inclusive porque o poder religioso
surge extremamente criticado também. Mas quando se constrói
uma cena com um representante inglês com uma arma na mão,
apontada para a câmera, dizendo que com aquele tratado que vai assinar
espera estar defendendo a liberdade e a democracia, como não pensarmos
no Afeganistão de hoje? O discurso é impressionantemente
igual. Ainda mais porque embora o poderoso em questão fosse inglês,
o verdadeiro catalisador da ação é um comerciante
norte-americano, que faz questão de lembrar a cada fala do colega
britânico ao ditar os termos do tratado: "A presença inglesa...",
e ele, "... e americana!", em diálogo que se repete comicamente
por três vezes. Ao final, a revolta é muito mais anti-colonialista
do que pró-soviética. Os brados de Pudovkin são contra
algo, sempre, mas raramente a favor da luta soviética necessariamente.
Isso ajuda a explicar porque ainda hoje, regime deposto, os filmes ficam
e continuam atuais e impressionantes.
(Aliás,
que se faça um parêntese final aqui: é fascinante
como todos os filmes terminam com a instituição da revolta,
da revolução, com um brado de guerra, um chamado à
luta. Nunca, como mandaria a dramaturgia clássica, com a vitória
no conflito, com a alegria final da solução. Claro que isso
possui uma explicação fácil, o desejo da incitação
à ação, da sensação do espectador que
depende dele também aquela vitória, que ele deve levantar
e agir porque há algo em curso. Mas também é interessante
pensar numa perspectiva pós-Revolução que uma vez
vencida a batalha, os comunistas tiveram dificuldades justamente em "concluir",
em achar o seu "final feliz". Como se sua especialidade fosse o processo
revolucionário mais do que a vitória e a solução
dos conflitos internos. Esta dramaturgia histórica está
ainda por ser solucionada.)
Eduardo
Valente
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