Princess Mononoke, de Hayao Miyazaki

(Mononoke Hime, Japão, 1997)


Os números em torno de Princess Mononoke impressionam: o filme custou cerca de 20 milhões de dólares, sendo o longa de animação mais caro já feito no Japão – a superprodução Akira custou menos da metade; à época de seu lançamento, Mononoke alcançou a maior bilheteria da história do país e foi também o vídeo mais vendido, com 4 milhões de cópias (algum tempo depois, porém, Titanic, a melosa e trágica história de amor e recheada de efeitos especiais que fez fortuna em todo o mundo, quebrou esses recordes). Para o lançamento nos Estados Unidos, a Miramax jogou pesado: foi escalado um time de dubladores que ia de Claire Danes a Billy Bob Thornton e, para escrevê-lo, Neil Gaiman, o queridinho das HQs. Reza a lenda que o filme chegou a ser dublado e teve exibição em cinema marcada no Brasil (seria o primeiro Miyazaki a passar em tela grande por aqui), mas, por algum motivo que nos escapa, foi cancelado. Isso quer dizer que não o tivemos nem no cinema nem tampouco o temos em vídeo, o que é uma pena, porque o barulho provocado por Mononoke não foi por nada.

Em primeiro lugar, faz-se necessário explicar por que falar sobre esse filme em particular, já que sobre a obra de Miyazaki pode se dizer que é algo vasta (realizar mais de uma dezena de longas de animação é um feito grandioso). Bom, acontece que foi com Princess Mononoke que o sujeito ficou mundialmente conhecido; os olhos do ocidente já se haviam voltado para ele algum tempo antes, mas nada que se compare com o que aconteceu a partir e por causa de Mononoke. Esse filme é também uma espécie de releitura de uma outra animação sua, chamada Kaze no tani no Naushika, de 1984 (ou Nausicaä of the valley of wind, como ficou mais conhecido); o próprio trailer de Mononoke anunciava: "13 anos depois de Nausicaa...". É caso de se pensar: mas como assim 13 anos, se o realizador não parou de produzir nesse intervalo? A única resposta possível, nesse caso, é: há alguma coisa em comum entre esses dois filmes. Segundo o próprio Miyazaki, o final de Nausicaa nunca lhe agradou muito, e ele continuou a escrever o manga homônimo – pois sim, estamos falando de alguém que é o que se pode chamar de workaholic, estando sempre envolvido em diversos projetos – durante aproximadamente 10 anos após o ter feito o filme de modo a construir um final que melhor lhe aprouvesse.

O tema de ambos os filmes é similar, mas parece que as relações homens/natureza estão muito melhor delineadas em Mononoke, tornando-o, portanto, em uma fita muito mais madura. Falar de maturidade quando se trata de uma animação pode parecer controverso, ainda mais quando estamos acostumados a assistir aos desenhos Disney, todos claramente desenvolvidos tendo como público alvo as crianças. Não é o caso no Japão, onde animes e mangas são extremamente populares em todas as faixas etárias da população; mas também não é o caso que Princess Mononoke seja o que costumamos chamar de "desenho animado para adultos". Miyazaki mesmo o definiu como apropriado para quem já passou da quinta série; e ele está certo. Um pouco pesado para quem conta com pouca idade por conter cenas de violência, é, no entanto capaz de cativar toda a audiência com mais de 10 anos.

Sua trama é algo complicada, mas não se pensarmos que não se trata de um filme infantil: Ashitaka é um jovem que vive em uma pacata aldeia afastada da civilização; isso se passa em algum ponto da Idade Média. Um dia, ele percebe um movimento estranho na floresta que circunda a vila: momentos depois surge um monstro terrível, uma espécie de enorme javali tomado por vermes horrendos, que parecem dominá-lo. A fera se aproxima com uma velocidade assustadora, em direção à aldeia do rapaz, destruindo tudo a sua volta; num ímpeto Ashitaka se lança à frente do javali e consegue matá-lo, mas antes tem seu braço ferido. Mais tarde ficamos sabendo que se tratava de um antigo deus da floresta que, por algum motivo, transformara-se em demônio. O machucado que ele deixou em Ashitaka acabará por, depois de lhe penetrar até os ossos, matá-lo. O rapaz está amaldiçoado. Para tentar se livrar de seu trágico destino, ou ainda para cumpri-lo, ele deve deixar a sua cidade e ir atrás da origem de uma bola de metal encontrada dentro do monstro. A bola, como percebe-se desde o primeiro momento, é munição de alguma arma de fogo e realmente, o jovem, em suas andanças acaba encontrando um forte onde uma comunidade vive da extração e fundição de metais. Lady Eboshi, a matriarca do lugar, emprega lá todo tipo de degradado da sociedade, de ex-prostitutas a leprosos, sendo amada pelos moradores do lugar. Ela tem, entretanto, inimigos poderosíssimos: os deuses que vivem na floresta em torno da cidadela; esses querem o fim de Eboshi porque ela ameaça seus domínios e esta, o fim deles, pelo mesmo motivo. A princesa Mononoke do título é uma mocinha que vive com esses deuses, todos animais gigantes e fortes e cuja maior meta é destruir Lady Eboshi. Ashitaka se apaixona por ela, é claro. Mas não há nenhuma história de amor melosa, mas antes um embate. Não um do tipo maniqueísta; aqui não há bem e mal, mas o bem de cada um, que é o que a todo momento se busca. De um lado, os homens, que precisam derrubar árvores e atravessar a floresta de modo a conseguir seu sustento e do outro, os habitantes da floresta (mononoke quer dizer monstro, espírito; é o espírito que vive em casa coisa, de uma casa a uma árvore) deuses que já perderam parte de sua força e para quem a presença dos humanos é o decreto de morte.

Estamos justamente no momento em que o homem, considerando-se como o outro da natureza, isto é, colocando uma barreira entre natureza e cultura, quer assenhorear-se dela. A natureza que não é homem luta como pode, tentando manter seu reinado sobre os humanos. O problema, já se disse, é que Deus deu razão a todo mundo. E os inimigos de morte, representados por Eboshi e San, a princesa Mononoke, têm cada qual razão. A sua razão. O papel de Ashitaka, que quer ao mesmo tempo salvar os moradores do forte, todos humanos, e também dar o espaço devido aos deuses da floresta, é tentar fazê-los entender que existe convivência possível. Princess Mononoke é um épico; há uma batalha feroz entre natureza e homem em que ambos findam por perder e onde o guardião maior da floresta, o deus-alce, caçado por Eboshi, morre destruindo tudo a seu redor para que, no instante seguinte, tudo floresça de novo. Ele é o deus que dá e toma a vida, e esse momento de sua morte é como uma segunda chance às pessoas e à natureza. É como se dissesse: vocês são um só nisso que é vida.

Princess Mononoke é muito bem acabado e traz todas as marcas principais do cinema de Miyazaki, sendo, talvez, o principal, a relação dele com a natureza; em seus outros filmes e também nesse não há nenhum tipo de antropomorfização, isto é, os bichos são bichos e ainda que deuses, correspondem a isso que são, não havendo nenhum tipo de "bom sentimento" ou "humanidade" aplicado a eles. As cenas de luta impressionam, a animação é incrível: conta-se que o próprio realizador redesenhou mais da metade dos quadros do filme. Todo o rebuliço causado por ele não foi à toa, absolutamente, e é com regozijo que se assiste a essa bela obra que parece querer dizer que, afinal, há possibilidade de acordo entre homem e natureza, malgrado o abismo de silêncio que os separa.

Juliana Fausto