A rica fauna da
pornochanchada
Como todo gênero, a pornochanchada também erigiu seus personagens típicos. Nada da mãe mexicana do melodrama ou do cavaleiro solitário do western. Ancorou-se em personagens nossos, muito nossos, comuns na vida doméstica brasileira - vida essa que a pornochanchada como gênero conseguiu levar para a tela mais do que qualquer outra contribuição, seja de um autor ou de outro gênero. Aproveitando-se de não precisar de crivo moral, esse gênero sempre tão mal-olhado e pouco estudado pôde dar livre vazão a tudo que não era de bom tom e de que todavia o país esteve sempre cheio: machismo, assédio dentro da empresa, sexo como ascendência social ou moeda de troca, recalque sexual tanto de mulheres como de homens (um recalque que pode remeter ao recalque existencial terceiro-mundista do brasileiro ou ao recalque social e político de se viver numa ditadura), tudo isso profundamente enraizado em nossa cultura e geralmente muito pouco trabalhado – pensamos, de imediato, apenas em Nélson Rodrigues (sabiamente apropriado por diretores mais "eruditos" da pornochanchada) e Martins Pena que, sendo de outro século, serve pouco para captar as intrigas da classe média brasileira. A pornochanchada vai criar e/ou retrabalhar uma gama de personagens que permanece até hoje no nosso imaginário, seja pelo poder de evocação delas, seja pela reapropriação que delas fizeram os programas humorísticos dos anos 80 (Jô Soares, ator de pornochanchada, ou Manuel da Nóbrega e seu filho Carlos Alberto). Abaixo, seguem alguns mais típicos. O GARANHÃO CAFAJESTE Depois de uma breve experiência em 1961, com Os Cafajestes, a figura do garanhão cafajeste volta com força total a partir do final dos anos 60, na figura de dois atores-produtores-roteiristas: Jece Valadão e Reginaldo Faria. O modelo é simples: um malandrão que tem como única finalidade na vida correr atrás de um rabo de saia. Além de ser bom para os produtores-atores, é bom para o público, que fica inebriado pela profusão de garotas bonitas que passa pelas telas e pelas mãos dos galãs. O ano de 1968 é especialmente deflagrador: Os Paqueras (Faria) e As Sete Faces de um Cafajeste (Valadão). Enquanto os dois galãs brigavam para ver quem conseguia mais meninas por filme, em São Paulo surgia outro ator-produtor, o indefectível David Cardoso. Só ele seria capaz de interpretar um dono de empresa de ônibus que cede um de seus carros gratuitamente para um colégio de freiras realizar uma excursão. Claro, é ele que vai como motorista. Os resultados são impressionantes. O nome do filme? Dezenove Mulheres e um Homem, de 1977 A VIRGEM PROFISSIONAL Herança de toda sociedade católica e particularmente da brasileira – onde a hipócrita religião oficial encontra-se com as poucas chances típicas do terceiro mundo –, a virgem profissional – ou a virgem como moeda de negócios – é a forma de uma família em apuros ter chances de ascendência social graças a um marido rico. Resta, então, como em Ainda Agarro Essa Vizinha, de deixar a pobrezinha e assanhada Adriana Prieto casta até que ela consiga um bom partido. Adriana Prieto, por sinal, se tornará a mais típica virgem profissional, pois repetirá o mesmo personagem em A Viúva Virgem. Ela é perfeita para isso: o rosto de menina com um pé tanto na inocência quanto na molequice, com aparência de anjo (era magra demais para ser uma gostosona) e olhos de menina experimentadora. Em Pintando o Sexo, uma espécie diferente de virgem profissional surge: a autoconsciente. Ela, junto com sua vovó, vivem de passar o golpe da falsa virgem nos velhos tarados. Aliás, só existe virgem profissional quando junto a uma vovó ou alguma aparentada, geralmente a titia malandrona. O VELHO TARADO Uma das primeiras ocorrências pré-comédia erótica desse personagem está em Crônica da Cidade Amada, de Carlos Hugo Christensen. É Oscarito, num esquete particularmente hilário em que, família a tiracolo, fica babando pelas menininhas na praia. A partir de então, o personagem do velho tarado (geralmente nem muito velho) será perfeito para os melhores comediantes exercerem seus tipos antológicos. Como Cazarré em Pintando o Sexo ou Costinha em suas inúmeras pornochanchadas e paródias, até Renato Aragão tira uma casquinha desse personagem para compor o herói ingênuo mas sempre afeiçoado a um rabo de saia, que recorrentemente jamais conseguirá. A FRÍGIDA GOSTOSA Da mesma forma que a figura da virgem profissional pertence por excelência a Adriana Prieto, a frígida gostosa tem por ícone maior Helena Ramos. É ela que dá vida a esse personagem em Mulher, Mulher (1977) e é depois catapultada à condição de estrela da novela das oito em Mulher Sensual (1980), quando é desejada pelo país inteiro mas não consegue ela mesma deixar florescer sua sexualidade. Sem sombra de dúvida, o perfil físico da atriz colabora. Apesar de ter um corpo extremamente bem-feito, seu rosto consegue transmitir um sentimento ao mesmo tempo gélido (pela imponência aristocríatica e pelo olhar distanciado) e cálido (pelas curvas do corpo e pelo rosto muito bonito). A frígida gostosa tem um padrão social bem definido: é geralmente muito rica, tem dinheiro sem ter precisado trabalhar. Tanto em Mulher, Mulher quanto em Império do Desejo, são viúvas de milionários. Se desde A Aventura de Antonioni é recorrente no cinema a idéia da burguesa entediada por estar absolutamente alienada do mundo, a pornochanchada contribui seu quinhão à evolução desse gênero de personagem. A MOÇA LIBERADA São os tempos de liberdade sexual e a pornochanchada, aproveitando-se da temática sexual de seus filmes, transforma a mulher liberada, egressa das barricadas de maio de 68, em um de seus persoangens mais recorrentes. Já em 1968, Os Paqueras apresenta uma moça que faz sexo simplesmente por fazer (como aponta Flávia Seligman numa das poucas coisas escritas sobre personagens de pornochanchadas, no caso os tipos femininos; o artigo chama-se "As Meninas daquela hora"). Em Amadas e Violentadas, de Jean Garrett, é a fotógrafa que tenta seduzir seu modelo, invertendo os papéis. Aliás, as moças liberadas estão volta e meia associadas à vida artística, onde os valores supostamente são mais questionados e, conseqüentemente, mais tênues. Mas o amor livre só é tema mesmo em Império do Desejo, de Carlos Reichenbach, sem dúvida a obra-prima do gênero, onde um casal hippie instala-se na casa de uma frígida gostosa e pratica quase todas as variações possíveis do sexo. O MARIDO INADIMPLENTE Omisso, sempre pensando mais em trabalho e dinheiro do que na vida sentimental/sexual do casal, o marido inadimplente faz a festa dos outros homens. E de suas esposas. O exemplar mais perfeito é o encontrado em Pintando o Sexo, inequivocamente chamado de Cornélio. A figura é cara e arquetípica: cabelinho boi-lambeu para trás, óculos enormes, e um grande fichário eivado de números que ele leva até para a cama. Enquanto a esposa (a deliciosa Meiry Vieira) espera na cama que a justiça seja feita, Cornélio repara que ela está nua e dispara: "Você está pelada? Você pode pegar um resfriado!" O marido inadimplente só existe em conjunto com a esposa em erupção. A ESPOSA EM ERUPÇÃO Segundo as leis do gênero, se o marido não coopera, a mulher vai encontrar quem o faça na porta ao lado. A lei é seguida à regra em Pintando o Sexo, onde Meiry Vieira, cansada de tentar novos golpes de sedução para restituir o desejo sexual ao marido Cornélio, acaba se entregando ao vizinho pintor, ou melhor, Paulo Hesse, num papel hilário. No mesmo filme, em outro episódio, Íris Bruzzi é Conchetta, a viúva dona de uma pensão. Guarda o celibato desde que se marido morreu, e conversa diariamente por horas a fio com um retrato dele que está preso em seu quarto. Até que um dos freqüentadores da pensão, apaixonado, decide jogar até a última carta na conquista da viúva. A resistência da virtuosa acaba por ser inútil, e o casal fará a "união de corpos" em frente ao retrato do marido defunto. A TITIA MALANDRONA Vigilante protetora da virgindade de sua sobrinha (ou netinha, conforme o caso), ela é na verdade uma das personagens mais hipócritas dentre todos os tipos da pornochanchada. Não preza tanto a pureza da sobrinha quanto uma bela conta bancária associada ao pretendente. Velha rapina da sociedade, é representada à perfeição por Lola Brah, atriz de porte aristocrático, em Ainda Agarro Essa Vizinha. Uma variação é a vovó de Pintando o Sexo, que estorque Cazarré ameaçando entregar a sua esposa as fotos do tórrido tête-à-tête desenvolvido entre sua netinha e ele. Sempre uma aura de mulher cândida travestida na pele de uma interesseira contumaz. O SAFADO ENGRAVATADO Mais do que uma instituição, um verdadeiro esporte nacional, a traição conjugal é item mais do que repetido na pornochanchada. Num exemplar do começo dessa época, Um Uísque Antes ... e Um Cigarro Depois, de Flávio Tambellini pai (o filho aparece, mas como ator do último episódio, seduzindo e apalpando a priminha), a traição aparece duas vezes. Na primeira, um marido revoltado com as insinuações que o melhor amigo faz para sua esposa, decide dar o troco cantando a mulher dele. O que deveria ser o ajuste de contas acaba, no final, se resolvendo na cama: a mulher acaba cedendo facilmente a seus movimentos e os dois fazem amor. Na volta, a mulher, ignorando o acontecido, pergunta o porquê da desistência da vingança. O marido responde qualquer coisa, evasivo. Em outro episódio do filme, um advogado recebe uma cliente que diz ter sido seduzida e desvirginada pelo noivo. Sendo maior de idade, diz o advogado, não resta a ela nenhum tipo de ação na justiça. Porém, ele está interessado em outra coisa: em ser o segundo sedutor da menina. Em Os Paqueras, o pai de Reginaldo Faria, também um empresário bem-sucedido, passa a vida entre a casa e Irene Stefânia, uma jovem estudante universitária. Por fim, a traição conjugal mais comum, a com a secretária: em Pintando o Sexo, Cazarré, antes de conhecer a virgem profissional que mora ao lado, vive ligando para a esposa, avisando que vai fazer serão. O serão, claro, envolve em alguma medida a secretária. Melhor, em todas as medidas. Definitivamente, na classe média brasileira dos anos 70-80, sexo é um prato que não se come em casa. Ruy Gardnier |
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