Jean Garrett, artesão da Boca do Lixo


Kate Hansen em Excitação de Jean Garrett (1977)

Quem perguntar pelo lugar de Jean Garrett na história do cinema brasileiro terá como resposta imediata que era um diretor de pornochanchadas. Se tiver um real ânimo para a pesquisa, o nosso perguntador vai ficar bastante abismado quando der uma olhada na filmografia e nas informações que se tem sobre os filmes do diretor. Afinal, por mais que haja títulos provocativos (Excitação, Possuídas pelo Pecado), todas as descrições de seus filmes estão longe das comédias eróticas descontraídas que vêm à mente assim que se fala o nome "pornochanchada", tão tipicamente expresso pelos filmes de Pedro Carlos Rovai no Rio ou Osvaldo Oliveira em São Paulo. Ao contrário, revelam um diretor muito mais afinado com o cinema de gênero (com os necessários toques eróticos do cinema comercial da época, é certo).

Pois bem, o cinema de Jean Garrett é bastante avesso ao rótulo de pornochanchada. Dele, todavia, o diretor não consegue se dissociar por dois motivos primordiais, um derivado do outro. O primeiro é o da proveniência. Fotógrafo de profissão, tendo trabalhado com moda, institucionais e fotonovelas, Garrett (nome real: José Antonio Nunes Gomes da Silva) começou no cinema por intermédio de José Mojica Marins e o percurso seguinte era inevitável: Boca do Lixo. Logicamente, isso significa uma determinada faixa de mercado e uma marca estilística: os filmes devem explorar a sensualidade e exibir corpos de mulheres com roupas mínimas, seja a intriga qual for.

Depois da assistência de direção em dois filmes de Fauzi Mansur (outro diretor bastante à vontade com o cinema de gênero, principalmente com o terror), Jean Garrett dirigirá em 1974 seu primeiro longa-metragem, A Ilha do Desejo (Paraíso do Sexo), e já se confirmará como aquilo que se tornará uma espécie de marca do seu cinema dentro da Boca do Lixo: o excelente artesanato, um cuidado de feitura incomum até então na maior parte do cinema da Boca, mais afeito a produções ligeiras, com poucos recursos e sem tanta preocupação com acabamento (ou melhor, com a forma clássica e "elegante" de narrar).

Amadas e Violentadas, de 1975, é um filme sombrio, que segue a vida de Leandro, um psicopata (interpretado por um David Cardoso incomum, comedido, de óculos e barba) sexualmente traumatizado desde a infância, quando o pai flagrou a esposa na cama com outro, assassinando-a e depois cometendo suicídio. Hoje, é um escritor bem-sucedido de casos de assassinatos não-resolvidos pela polícia. A trama segue sem muita inventividade: ele decide escrever um livro baseado em todos os assassinatos que vai cometendo, sempre arroubos de violência a partir de uma incitação ao sexo. A primeira seqüência do filme, muito seca, mostra uma mulher que entra com um homem num apartamento e, ao longe, escondido por uma parede, um homem que a observa. Corta para dentro do apartamento: o casal inicia as preliminares, dedicando tempo suficiente para o espectador analisar as protuberâncias sensuais da atriz e fazer valer o seu ingresso. Alguém bate à porta. É nosso anti-herói, que com um extintor de incêndio ataca primeiramente o homem e depois a moça que, logo saberemos, trata-se de sua secretária.

O cinema de Jean Garrett divide-se nessas duas preocupações. A primeira é uma necessidade sua, própria, de criar climas de suspense, de utilizar a linguagem cinematográfica clássica e poder trabalhar com ela, de forma seca (pouquíssimos planos e cortes desnecessários) e efetiva. A segunda, obviamente, é questão do métier: dedicar um generoso espaço narrativo-visual - e, claro, criar na trama ocasiões que facilitem - dado aos corpos seminus das atrizes.

Mesmo que o argumento do filme deixe tudo esquemático demais - as mulheres devassas, a virgem que serve de esperança de regeneração, o policial que investiga, a repórter que está no caminho certo -, não impede que Amadas e Violentadas tenha um certo charme, garantido por certas cenas particularmente inspiradas, como a aparição de Marina (a menina virgem), no meio da floresta, desesperada, dizendo estar sendo perseguida. A relação entre Leandro e Marina permanecerá sendo a grande marca do filme: o encontro dos dois é apenas uma atualização do mito da Chapeuzinho e do Lobo Mau ou a menina é uma chance de recuperação para o serial killer?

Apesar de ser um filme que se pauta pelos assassiantos, eles não são filmados com o glamour costumeiro dos filmes de terror desde Sexta-Feira 13. A morte da fotógrafa, sob esse aspecto, é exemplar: um pouco de nudez, um ambiente saturado de sexualidade (uma peruca "elegante" da moda da época, uma luz vermelha que estoura a tela) e basta que a câmera mostre Leandro começando a estrangular a moça. Corte.

A mesma temática da recuperação está presente em O Fotógrafo, seu filme mais pessoal (o primeiro de uma produtora própria), cinco anos depois, em 1980. Roberto Miranda interpreta o profissional da fotografia erótica, um garanhão que entretanto almeja a pureza, a arte, a inatingível garota universitária que mora no prédio em frente. Sozinho, ele imagina diálogos possíveis: um nome, uma atividade (aluna de psicologia)... Enfim, a esperança de se livrar do mundo pouco encantado em que vive.

Um filme mais pessoal, entretanto, não quer dizer que o diretor utilize menos nudez. Ao contrário, O Fotógrafo segue à risca as bases da Boca, ou daquilo que Garrett sempre fez na Boca: um filme psicológico, centrado na intimidade de um personagem, que se ampara na temática da sexualidade e na nudez de moças bonitas para conseguir acesso ao público. O filme inclusive utiliza bem mais o sexo do que Amadas e Violentadas, conforme a evolução da própria Boca do Lixo durante os anos 70. Numa delas, hilária, um malandrão que quer empresariar uma "atriz" (e tem, obviamente, segundas intenções para com a moça) arma para ela uma sessão de fotos com um ator, e tanto melhor que ele seja homossexual. Só que a coisa desanda. Enquanto o fotógrafo e o malandrão conversam, a moça sente-se aconchegada por finalmente um homem não lhe tratar como objeto, e convence o rapaz a fazerem sexo ali mesmo, no estúdio, para os olhos estupefatos do produtor.

A intriga principal, no entanto, se desenvolve a partir da relação de Roberto Miranda com Aldine Müller, a estudante - não de psicologia, mas de sociologia. Ele tenta seduzi-la aos poucos, só que é ela quem toma as rédeas. Diz que quer fotografar para registrar a realidade, a miséria, questiona seu interlocutor a respeito de seu trabalho puramente comercial, nada pessoal. Na parte final do filme, o fotógrafo consegue finalmente levá-la para cama. Resultado: o dito cujo não sobe. Da mesma forma que em Amadas e Violentadas, a chance final de regeneração é falsa, aquilo que é visto como horizonte de felicidade não passa de uma falsa esperança. A cena final restitui a afirmação de seu trabalho: é com sua produtora que encontrará a felicidade (tanto profissional quanto sexual).

A mensagem é inequívoca: por mais que o diretor da Boca tente se arvorar por uma arte "pura", "limpa", jamais vai estar livre dos constrangimentos temáticos. Assim, não haveria melhor solução do que aceitar-se como o que se é, saber que o que se faz não é em nada degenerado. Se isso se articula no plano da narrativa, da trama principal, acontece também nas entrelinhas, no discurso do filme. As cenas de sexo são mais livres, a pegação corre solta, com algumas simulações (quando anteriormente o que havia era apenas nudez), e inclusive com um ensaio final entre duas mulheres que pouco deve às sessões softporn de começo de madrugada nas TVs a cabo.

Mas se a questão mesmo é incorporar-se ao modelo de produção, então o melhor filme de Jean Garrett permanece sendo Mulher, Mulher (1977), com Helena Ramos, um grande sucesso de bilheteria que deflagrou a onda na Boca do Lixo de filmes em que atrizes interagem com animais. Mas Mulher, Mulher está livre de qualquer exploração mais bizarra do tema. No filme, Helena Ramos é uma mulher frígida, incapaz do prazer sexual. Morto seu marido, um psicanalista que lhe tentara fazer todas as vontades e experimentações (troca de casais, ménage à trois), ela enfurna-se numa casa de campo para recuperar-se enquanto vive cercada de memórias.

Trata-se da direção mais delicada de Jean Garrett, e do máximo que ele chega a fazer um filme culto à maneira de Walter Hugo Khouri. As ressonâncias são inequívocas: uma mulher de alta burguesia, com hábitos burgueses (ouvir o Schumann tocado por seu marido, galopar na verde relva da fazenda), dominada por uma falta que a angustia levando-a à loucura; a dimensão de interdito ou perdição que o sexo significa para a personagem; e a forte dimensão psicológica dada pelos relatos das clientes do marido que a mulher volta e meia ouve.

As deficiências, em geral, são as mesmas: esquematismo da trama, falta de profundidade, e acima de tudo uma edição de som muito pouco trabalhada, sempre entregue a significações muito batidas (pianola de caixa de música para expressar pureza, por exemplo, em Amadas e Violentadas). Em Mulher, Mulher, o uso da música clássica serve mais para dar um ar blasé de elegância à trama do que para propriamente compor o personagem. O paralelo é inevitável com o primeiro flerte de Khouri com a Boca - As Deusas e O Último Êxtase. Servindo-se do modelo de Khouri para fazer seu filme mais ousado, o filme-filial descobre uma última verdade sobre o cinema-matriz: é o exploit que supõe o tema, e não vice-versa. Essa verdade, tão geralmente escamoteada no cinema de Khouri – que sempre tenta contrapor psicologicamente, ou melhor, sobressignificar com a psicologia toda a pornografia que exibe com uma certa pulga na orelha –, é em Mulher, Mulher admitida, aceita e positivada.

Na cena mais comentada do filme, Helena Ramos dirige-se ao estábulo para entregar-se àquele que sempre foi seu único objeto de predileção sexual, um cavalo de sua fazenda. A cena é quase ingênua comparada ao que depois se seguiu na Boca: o animal apenas lambe-lhe os seios, e disso a mulher tira seu único gozo no filme inteiro.

Só que Mulher, Mulher não é tão simples. Além de pautar a frigidez e Helena Ramos para cineastas mais considerados (Antônio Calmon, Sílvio de Abreu), o filme vai além de todo o pornodrama da época. Aproveitando-se da condição psicológica deteriorada de sua personagem, a narrativa é esperta e incorpora os delírios de loucura da personagem à trama, de modo que ao final do filme não saibamos efetivamente o que é verdade e o que é mentira. Meio caminho entre O Ano Passado em Marienbad e Uma Mente Brilhante, a magnum opus de Jean Garret lhe garante lugar de destaque não só entre as figuras mais notáveis da Boca, mas entre todo o conjunto de cineastas dos anos 70.

Com a falência progressiva do modelo da pornochanchada e de todos seus gêneros acessórios (pornodrama, policial-erótico, suspense-erótico), Garrett terminou a carreira cinematográfica realizando filmes de sexo explícito, alguns com títulos bastante curiosos, como Fuk Fuk à Brasileira (1985) ou O Beijo da Mulher Piranha (1986). Típico modelo de diretor que funciona apenas numa indústria de cinema, o fim da era da película na Boca do Lixo significou o fim de carreira para Garrett, que morreu exatos dez anos longe do cinema, em 1996. Fica para a posteridade a figura de um diretor elegante, cuidadoso, com algum talento formal (iluminação e enquadramentos acima de tudo, herança de seu passado de fotógrafo) que realizou alguns dos mais interessantes filmes da Boca do Lixo.

Ruy Gardnier