Pecados de Guerra,
de Brian De Palma


Casualties of War, EUA, 1989

Com o sucesso de Platoon, filme de Oliver Stone lançado em 1986, um sem-número de projetos que envolviam discussões sobre a guerra do Vietnã foram viabilizados pelos grandes estúdios americanos. Realismo, crueza, tom crítico, astros carismáticos, sub-temas polêmicos: fórmula estabelecida para repetir a performance do filme de Stone nas bilheterias mundiais e no palanque do Oscar. Projetos dessa natureza precisavam de diretores de renome para encabeçá-los. Diretores de renome, não por acaso, já haviam pensado uma ou outra vez em fazer um filme sobre o Vietnã. Agora tinham sua chance.

Assim, em fins da década de oitenta, ao menos duas grandes produções notáveis que tratavam do tema foram lançadas: o antigo projeto finalmente viabilizado de Stanley Kubrick, Full Metal Jacket (concebido como uma resposta ao Apocalypse Now de Coppola); e Casualties of War, de Brian DePalma, cineasta cujo filme anterior, Os Intocáveis, havia lhe rendido láureas e uma posição razoavelmente confortável dentro do sistema de estúdios.

Pecados de Guerra deve sua gênese à imensa repercussão de um artigo publicado em 1969 que denunciava um fato real envolvendo o rapto, estupro coletivo e assassinato a sangue frio de uma jovem civil vietnamita por soldados americanos. Não é de se estranhar, dada a natureza polêmica da história, que sua adaptação para cinema demorasse duas décadas para ser realizada: questão política, por certo. Estranho mesmo é que DePalma, cineasta consagrado por seus thrillers psicológicos, fosse interessar-se pela realização.

Seus motivos podem ser parcialmente conhecidos numa entrevista retrospectiva encontrada entre o material adicional recolhido para a edição em DVD lançada este mês pela Columbia no Brasil. Os depoimentos de DePalma, do produtor Art Linson e do astro Michael J. Fox formam o cerne deste lançamento. Somando quase uma hora, este material produzido e organizado pelo especialista Laurent Bouzereau tem lá seu interesse: entre a tradicionalmente extenuante exposição de desinteressantes casos envolvidos na feitura do filme (como se deu a escolha das locações; a dificuldade de se fazer um filme na Tailândia; a visita da esposa de Fox ao set, etc, etc.), destacam-se algumas informações e opiniões bastante úteis (ficamos sabendo, por exemplo, da recusa do diretor em participar da guerra, o que, imaginamos, levou o produtor a contratar o roteirista David Rabe, um veterano do conflito, para dar maior "autenticidade" à coisa toda). No conjunto, porém, deve agradar apenas aos fanáticos pelo filme ou pelo trabalho do cineasta.

Muito da mitificação deste diretor, a despeito de seu enorme e mais que reconhecido talento, deriva de sua obsessão pelo universo hitchcockiano, a ponto de atualizar alguns clichês que definiam a própria apreciação pública da obra do mestre inglês: reconhecido no exterior (principalmente na França) como um autor, dono de uma obra formalmente sofisticada e de forte teor pessoal, DePalma continuaria, nos Estados Unidos, ignorado enquanto tal. Nenhum outro de seus filmes problematiza tanto esta questão quanto Pecados de Guerra, onde as obsessões pessoais do cineasta entram muitas vezes em conflito direto com o teor do projeto, com ampla vantagem para as primeiras. Pecados de Guerra não é propriamente um filme sobre o Vietnã, mas sobre outra espécie de guerra: seu tema principal é a passividade, a culpa, o remorso e a possível redenção de um homem. Obviamente, há uma posição clara sobre o Vietnã, ainda que sob as formas de um silêncio incômodo ou de uma alegoria inconsequente.

O filme se estrutura sobre uma variação de um padrão narrativo sempre presente nos trabalhos de DePalma, aquele do sonho/pesadelo (de Carrie ou Vestida para Matar). Mais que uma figura de estilo, este dispositivo de narração é parte fundamental do seu projeto de cinema e demonstra uma das faces de sua relação ambígua com a natureza da imagem: a denúncia do seu estatuto, a radicalização da forma como estratégia para evidenciar sua natureza ilusória, sua falsidade última. Por outro lado, outros operadores narrativos vão complementar o movimento, fetichizando o conteúdo imagético. Esta dupla operação, com tudo que promove para a falta de clareza de seus objetivos, é o dado mais rico e original do cinema de DePalma.

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Durante uma viagem de ônibus em 1974 (uma manchete de jornal nos informa da renúncia de Nixon), Steve Eriksson (Fox) relembra sua passagem pelo Vietnã. Em flashback, vemos o soldado Eriksson ser resgatado pelo sargento de seu pelotão (Sean Penn) de uma morte nada honrosa nas mãos de um sanguinário vietcongue. Rastejando como um réptil em um túnel vermelho, o vietcongue se esgueira, traiçoeiro, com uma faca presa à boca. O sargento, em arriscada operação, resgata o soldado preso no túnel. Posteriormente, ambos abrem caminho com seus rifles em meio à selva hostil.

Já nas instalações americanas, Eriksson é advertido por seus colegas do risco de comer frutas trocadas por chocolates com as crianças vietnamitas de uma aldeia. Podem estar envenenadas, podem conter vidro moído, diz o sargento. Brownie, um soldado negro em vias de voltar para a América, antecipa a saudade que vai sentir do local. "Isto aqui é como a Flórida", ele diz, antes de ser fuzilado por um franco-atirador inimigo.

Traiçoeiras crianças da aldeia, seres rastejantes, ameaças invisíveis: triste destino o dos vietnamitas, combatentes ou não. Já sabemos desde o início que aqui não passam de clichês, revestidos e constituídos dos mais diversos preconceitos embutidos na visão do colonizador. Eriksson, o humanista, enxerga seres dignos de pena: "Nós devíamos estar ajudando esta gente", diz ele, propagando tortamente uma mentira que o levou ao alistamento voluntário.

Impedidos por ordem oficial de saciar seus instintos sexuais com as prostitutas da cidade, os rapazes do grupo de Eriksson armam um plano: porque não sequestrar uma garota do povoado local para tal finalidade? É o que fazem, quando apontados para uma missão qualquer, sem o consentimento de Eriksson nem de um recém-chegado soldado latino (John Leguizamo, em início de carreira).

DePalma caracteriza este grupo de soldados como uma gangue de adolescentes desviantes em busca de afirmação. Esta bizarra transposição de um relato tipicamente urbano para o contexto selvagem da selva terceiro-mundista diz muito sobre as intenções políticas do filme, mas principalmente de seu alcance limitado. Tanto é que a descrição das relações que o grupo estabelece com as autoridades oficiais é característica de um embate geracional: o questionamento da autoridade estabelecida é tão-somente um ato de rebeldia juvenil.

Eis que Eriksson, o rapaz marginalizado por sua recusa em participar do estupro coletivo (que observa à distância), o bom rapaz é acometido por sentimentos em relação à pobre moça: ele lava suas feridas, dá-lhe de comer, consola sua alma violentada. Nobre ato de penitência católica?

A recorrência de uma figura na obra de DePalma lhe valeu a alcunha de misógino: sua obsessão em descrever tentativas mal-sucedidas de resgate de mulheres em perigo. É Vertigo por certo que vem à mente quando em Blow Out, a câmera gira ao redor de John Travolta abraçado ao cadáver de Nancy Allen; não é outro que lembramos quando Michael Fox, atingindo o orgasmo figurado em explosões de napalm, assiste sem nada poder fazer à queda da jovem vietnamita, em sequência grandiloquente.

Eriksson finalmente consegue denunciar seus companheiros, levando-os à corte marcial. Vale a pena conferir algumas cenas excluídas do corte final, presentes na seção de extras do DVD, que apresentam uma versão mais longa da sabatina dos soldados em julgamento. Elas demonstram uma liberdade narrativa que faz lembrar os primeiros DePalma, independentes e experimentais.

Ecos de Vertigo ainda soam no fim, quando uma segunda mulher vietnamita, a mesma atriz com um nariz falso e peruca, reaparece anunciando a Eriksson sua redenção: "Você teve um pesadelo? Agora terminou". A trilha de Morricone ressalta a absolvição final com um coro particularmente eloquente, encerrando o filme com uma nota fortemente pessoal. Com todos os seus problemas, não se pode dizer que falta a Pecados de Guerra uma qualidade nada vulgar: a coragem de ser fiel a si mesmo ao ponto do paroxismo.

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Nunca se viu Pecados de Guerra em cópia tão boa. Apresentado no formato original de Cinemascope (relação 2.35:1), podemos apreciar devidamente uma das mais expressivas utilizações do formato em toda a obra de DePalma. As relações espaciais são um dos grandes trunfos deste filme, que conta ainda com um trabalho de iluminação excepcional do fotógrafo Stephen Burum, valorizado em cada nuance. Para um cineasta cujo rigor formal pode e deve ser comprovado em cada enquadramento, o respeito às concepções visuais originais são imprescindíveis.

Para um filme largamente visto em seu país natal como um sub-produto de Platoon (uma noção que se deve unicamente, imaginamos, ao seu fracasso de bilheteria), o cuidado dedicado a esta edição não deve nada àquela dispensada a alguns clássicos. Ainda que sinta-se falta de uma trilha de comentários (não temos notícia de nenhuma gravada por DePalma para nenhum de seus filmes), trata-se de uma belíssima edição em DVD.

Fernando Verissimo