Fuga de Nova Iorque, de John Carpenter

Escape from New York, EUA, 1981

Sabemos com poucos minutos de projeção que se trata de um filme B: uma prisão, um acidente, um xerife, um preso, um acordo... Podemos pensar em diversos gêneros - do western ao policial noir -, mas no entanto existe algo que singulariza Fuga de Nova Iorque: John Carpenter. É quando escutamos as primeiras notas da trilha sonora, ou quando pela primeira vez acompanhamos os belíssimos movimentos da steadycam/panaglide de Dean Cundey, ou quando nos deparamos com um "futuro" que se dá em 1997, ou quando notamos a riqueza da associação entre fotografia e direção de arte que dá à prisão onde a maior parte do filme se passa um tom expressionista... É, não podemos pensar mesmo em muitos outros diretores quando temos, num filme de ficção científica, a cidade de Nova York transformada em prisão de segurança máxima e Donald Pleasence como presidente dos EUA: é sem dúvida um filme de John Carpenter.

O que percebemos de imediato em Fuga de Nova Iorque, porém, é a continuidade que Carpenter dá ao projeto político já rascunhado em Assalto à 13a D.P.: novamente estamos num território de excluídos, daqueles que deformam o "sonho americano" e, por conta disto, são postos à margem da sociedade. A novidade é que desta vez será o próprio presidente americano a ser confrontado por aqueles que seu governo transformou em presidiários. É especialmente instigante o momento em que The Duke, o mandachuva da cidade-prisão, brinca de tiro ao alvo com um aterrorizado presidente e faz este repetir "You are The Duke of New York, you're A number 1". Existe, no entanto, uma ironia ao percebermos que a Nova York transformada em prisão nada mais é que um espelho da sociedade americana: há um governante (The Duke), seus conselheiros e uma população de marginais que depende das negociações por anistia que The Duke irá travar com as autoridades responsáveis pelo resgate do presidente. Impossível não lembrar do magnífico Samuel Fuller e sua obra-prima Paixões Que Alucinam, onde um jornalista passa a integrar a população de um hospício por conta de uma investigação criminal. O que tanto Fuller quanto Carpenter promovem nos seus filmes (e aqui consideraremos também Fuga de Los Angeles, a continuação deste filme que Carpenter dirigiu em 1996) é a reflexão acerca do fracasso da sociedade americana, e não será surpreendente notarmos a existência de pontos comuns entre os trabalhos dos dois diretores: comentários sobre guerra-fria, a participação dos EUA em batalhas pelo mundo afora, preconceito racial, anticomunismo e o poderio atômico norte-americano fazem-se presentes nos questionamentos que os dois cineastas realizam. Carpenter, como Fuller a seu tempo, revela o seu interesse por um cinema que dialogue constantemente com o mundo e o momento histórico ao qual se dirige.

Mas o que torna Fuga de Nova Iorque uma experiência muito particular dentro da filmografia de seu autor é a criação do personagem Snake Plissken. Pois se podemos verificar já nos trabalhos anteriores do diretor a progressão deste personagem outsider (Napoleon Wilson em Assalto à 13a D.P., Laurie Strode em Halloween), é apenas com Plissken que tal personagem ganha forma plena. Como diz o próprio Carpenter, "Snake Plissken não se importa. Ele não se importa se vai ferir ou salvar você, ele apenas quer seguir seu caminho". Esta lógica individualista é uma das características máximas do cinema clássico americano, e se ela atinge seu auge nos memoráveis Rastros de Ódio e Os Imperdoáveis, respectivamente dirigidos por John Ford e Clint Eastwood e ambos westerns, é também muito bem representada pelas obras de diversos outros cineastas como Don Siegel, Budd Boetticher, Samuel Fuller, Billy Wilder, Raoul Walsh, Nicholas Ray, Robert Aldrich, entre outros.

É assim que Fuga de Nova Iorque - junto com Vampiros, Eles Vivem, O Enigma de Outro Mundo, Fantasmas de Marte, Fuga de Los Angeles, Os Aventureiros do Bairro Proibido e especialmente Assalto à 13a D.P. - estabelece Carpenter como sucessor deste cinema que preza os personagens errantes, a narrativa clássica, a mise en scène que dinamiza a ação e o trabalho "invisível" da câmera cinematográfica. É um grande filme.

Bruno Andrade