Ela Quer Tudo

She's Gotta Have It, de Spike Lee (EUA, 1986)

É uma experiência curiosa, após passar anos acompanhando a carreira de um diretor e ter assistido a quase todos os seus filmes, finalmente ter acesso ao seu trabalho de estréia. A tendência é procurar se os elementos chave dos filmes seguintes já poderiam ser captados em um primeiro momento, alem de verificar se o artista em questão já apresentava desde o início as virtudes que nos levaram a admirá-lo. Principalmente quando se trata de uma persona tão singular quanto Spike Lee.

She’s gotta have it ,de 1986, é uma primeira obra exemplar, com todo o peso que pode estar embutido nesse conceito. É uma fita despojada, na qual se pode sentir o vigor da juventude de um autor que, se ainda não havia atingido a maturidade, já demonstrava um capricho na construção de sequências e no posicionamento da câmera. Em alguns momentos, pelo já citado despojamento, pela aparente improvisação, pela fotografia em preto e branco e pela utilização do jazz na trilha sonora, nos lembrou vagamente o Shadows, de John Cassavetes. Passa também, sem que isto seja um demérito, aquela coisa da ação entre amigos, com irmã e papai no elenco, além dos atores que eram desconhecidos até então, e assim o permaneceram.

A história de Nola Darling, uma mulher (negra, naturalmente) que hoje em nosso meio poderia ser chamada de "cachorra", por sua vida sexual bastante ativa e por se dividir entre três namorados fixos, parece um pouco deslocada da temática de afirmação e denúncia dos problemas da comunidade afro-americana, a qual associamos instintivamente a Spike Lee. Mas lembramos que, em sua obra posterior, Lee volta e meia se dedica a traçar perfis femininos, como em Crooklyn e Garota 6. Mas o diretor militante já pode ser vislumbrado em alguns momentos, como na primeira imagem do filme, ainda durante os créditos, onde se vê uma parede pichada com dizeres que conclamam à secessão do Brooklyn.

Uma sequência, em especial - o balé com o qual Jamie, o namorado certinho, presenteia Nola em seu aniversário-, a única colorida do filme e precedida por uma citação a O mágico de Oz, nos faz refletir sobre uma faceta pouco explorada na carreira de Spike Lee: a sua habilidade para dirigir números musicais coreografados. Estes estão presentes também em School Daze , no início de Malcom X e em alguns momentos de O Verão de Sam, mas sempre me fazem imaginar que Lee poderia a qualquer momento, caso tenha às mãos o material adequado, nos presentear com o grande filme musical que o cinema americano está devendo há bastante tempo.

Gilberto Silva Jr.