Sade
versus Sadismo, ou teria sido Sade uma mera Dercy Gonçalves?

Qual Sade abordaremos?
O Sade estruturalizado
(à luz de Fourier e Loyola, via Barthes)?
O Sade existencializado (atualizado em Genet, via Sartre)?
O Sade neonietzscheanizado (antpsiquiátrico, via Foucault)?
O Sade inversamente simétrico à Kant (via Adorno)?
O Sade hipostasiado como Anticristo pelos que fetichizam um "Mal"?
Ou ainda o Sade beatificado como mártir da liberdade de expressão
(via Kauffman)?
Bem, todos os Sades
enumerados me interessam e fascinam, simulacros que são. Mas muito
me interessa e impele demolir a versão apologética e higienizante
de Philip Kauffman, porque pra mim, se há em Donatien Alphonse
François algo meritório, este algo consiste justamente no
paroxismo das suas aporias sexuais. Sade conduz os desregramentos libertinos
à píncaros de depravação e violência
que fazem a vida carcerária no Carandirú ficar parecida
com joguinhos paroquiais de jardim de infância.
Sim, porque no Carandirú
(assim como em outros presídios) ainda há uma Moral circulando:
estupradores, necrófilos, pedófilos, infanticidas (e outras
aberrações criminosas) sofrem sanções morais
(leia-se "facadas até a morte"). Quem tiver alguma dúvida
sobre isso que leia então a matéria recentemente publicada
em famosa revista semanal, que noticiou que os detentos de um certo presídio
brasiliense só não conseguiram assassinar Marcelo Borelli
(o monstro que torturou uma menina de 3 anos de idade com pontapés
e eletrochoques, tendo inclusive filmado a tortura) porque a polícia
os impediu.
Direitos "humanos"
salvaram Borelli...Irônico, não é?
Bem, estamos falando
de Sade. E no mundo sadiano personagens como este Borelli são apenas
iniciantes despreparados. Basta que fique dito isto pra que se forme na
mente do meu leitor a dimensão bárbara e exata do que seja
a configuração de um Inferno (na medida em que um mundo
sem Tabus e também imensas e contínuas explosões
de violência física/psíquica se tornam coisas sinônimas).
O opus sadiano é tanto a suma do Prazer desregrado (e portanto
sua parte mais digerível e legível) quanto sobretudo também
é a suma da Maldade em estado Delirante, Barroco e Sistemático
(parte quase que quimérica, dificilmente transponível).
É Impossível
lê-lo sem passar mal, sem sofrer. Por isso mesmo não possui
discípulos, nada até hoje na literatura igualou sua imaginação
depravada, criminosa e anti-humana.
Daí que só
mesmo enquanto objeto de análise literária ele reaparece,
sendo rico o processo de confrontá-lo, de encarrar essa "prosa
dos infernos" e refinar nosso senso do que seja bondade, ainda que
a um custo caro e sem garantia de sucesso, porque aprendemos com Marx
que o que chamamos de "bondade" é tanto uma capacidade
inerentemente humana quanto um produto ideológico derivado da sentimentalidade
burguesa.
O processo é
rico. O desafio moral e psicológico é imenso. Mas no entanto,
eis que Philip Kauffman o reduz, caindo num didatismo explícito,
vergonhoso, procurando justificá-lo (e também a seus leitores)
apoiando-se na noção de que a arte é a sublimação
curativa de impulsos criminosos.
Tamanha tolice! Será
que Kauffman nunca leu Thomas de Quincey...?
David Bowie certamente
sim. Aliás, em seu "Ouside", Bowie consegue se aproximar
de forma fascinante, rica e desafiadora dos conteúdos sadianos
sem cair em reducionismos (sobretudo sem ter sequer enfocado Sade diretamente).
Mas voltemos à Kauffman.
"Contos Eróticos
do Marquês de Sade", nos propõe esse diretor.
Ok. Vamos haver. Trata-se
de uma fábula moralizante, rasa. Sade reduzido à Dercy Gonçalves
(isto é: a uma criatura desbocada e pretensamente sincera, que
perturba nossa frígida etiqueta e hipocrisia, nosso frígido
senso de conveniência tipicamente aristocrático e pequeno-burguês).
Veremos desfilar pela
película a Marquesa de Clairwil (esposa de Sade, cujo nome apropriadamente
capcioso se assemelha em função com o de Claire Niveau,
personagem que intriga e divide os irmãos Mantle naquele "Gêmeos"
de Cronemberg), o abade Coulmier (bondoso, sensato, responsável
pelo sanatório Chesterton, onde Sade se encontra internado), Madeleine
(camareira e cúmplice copista dos textos de Sade) e o Dr. Royer-Collard
(médico tirânico, antagonista e algoz do abade Coulmier,
quase à altura da perversidade das crias literárias sadianas).
É nesta quadratura
(Sade/Coulmier/Madeleine/Dr.X) que se encontra estrutrado o filme, numa
grade de distribuição temática, conforme se desenrolam
encontros/diálogos entre eles:
1 - Nas conversas
entre Coulmier e Sade:
(a) Discussão
da forma literária (Coulmier aconselhando Sade a ler o que escreve,
para aprimorar sua prosa:"Você não é o anticristo,
mas apenas um revoltado que sabe soletrar". Ou ainda: "Você
escreve mais do que lê. Como pode achar que irá evoluir como
escritor se não pára pra reler e avaliar o que escreve?".
De fato essa é uma forma interessante de se abordar o Marquês,
colocando-o entre nós mortais, ao invés de entificá-lo,
entronizá-lo nos píncaros de um "mal" que não
passa de satanice púbere, punkismo, teologia negativa);
(b) Literatura e arte
em geral aparecem como sublimação de impulsos criminosos
(novamente Coulmier admoestando Sade, incentivando-o a escrever);
(c) Função
política de uma literatura que seja reflexo-denúncia da
violência e hipocrisia da sociedade (Coulmier funcionando como duplo
de Kauffman, justificando politicamente, brechtianamente, o opus sadiano);
(d) O amor reprimido
de Coulmier pela camareira Madeleine (momento em que Sade funciona como
psicanalista do abade, procurando fazê-lo enxergar a naturalidade
e "pureza" de sua paixão por ela).
2 - Nas conversas entre Coulmier e Madeleine:
(a) A importância
de ler, escrever, ter cultura (Coulmier doutrinando a jovem plebéia,
trasmitindo-lhe os valores "humanísticos" de sua casta);
(b) A importância
da piedade religiosa (Coulmier deliberadamente reprimindo sua atração
física por ela, e incitando-a a fazer o mesmo);
(c) A importância
da arte como sublimação curativa (retorno ao tema principal
do filme, já tratado nos diálogos com Sade);
(d) A ratificação
da noção de uma literatura política, reflexo-denúnica
da sociedade ("Tendo eu vivido tantas coisas difíceis e testemunhado
tanta crueza nessa vida, não é qualquer prosa que me desperta
o interesse na leitura", Madeleine explica para Coulmier, justificando
o porque de seu interesse nos textos de Sade).
(e) O flerte velado,
a ofegância, o tremer de lábios, enfim, a paixão vazando
pelas pequenas arestas que a castidade do abade não conseguiu encobrir
e que o desejo de Madeleine desavergonhadamente não reprime.
Importante ainda frisar:
para Coulmier os escritos de Sade só são úteis na
medida em que fazem parte do processo terapêutico, como forma de
catarse/sublimação privada, destituídos portanto
de valor estético-literário, ao passo que para Madeleine
a obra sadiana possui valor-função literária e política,
conforme destaquei no quesito 2-(d) à pouco.
Coulmier incentiva
Sade a escrever para si mesmo. Madeleine inspira Sade a escrever para
o Mundo. Tanto que ela mesma repassa seus manuscritos para o mercado negro
além de lê-los para o resto do corpo de funcionários
(mais especificamente: 2 guardas e uma outra jovem camareira que costumam
copular diante de Madeleine, no celeiro do sanatório). Aliás,
todos os demais personagens (o pequeno grupo de loucos que cerca o Marquês,
as outras camareiras, os guardas do sanatório, os políticos,
párocos, a plebe) servem apenas como fundo decorativo para os embates
ideológicos/emocionais que ora
desenvolvo nesta grade temática.
Bem, continuemos.
3 - Nos contatos entre
Sade e Madeleine:
(a) Joguinhos eróticos
(beijos, sarros);
(b) A admiração
de Madeleine pelos textos grosseiros, diretos, depravados e violentos
do Marquês;
(c) A cumplicidade
e intermediação de Madeleine (que, conforme apontei antes,
transcreve e despacha secretamente os textos do Marquês que serão
vendidos no mercado negro);
(d) Sade a elege como
sua musa (ela o inspira tanto por força de suas vivências
ali no sanatório quanto também pelos relatos de histórias
reais e sórdidas que costuma contar pra ele, como por exemplo a
história do casamento do Dr. Royer-Collardcom uma ninfeta de apenas
16 anos).
4 - No confronto entre Coulmier e Dr. Royer-Collard:
Uma querela terapêutica
que existe ainda hoje: terapia de sublimação (como aquela
proposta por Nise da Silveira) através da arte e de atividades
recreativas amenas VERSUS a truculência policial/farmacológica
(vigilância carcerária e controle químico da consciência
dos pacientes, conforme as correntes mais radicais da psiquiatria).
5 - No confronto entre Sade e Dr. Royer-Collard:
Veremos o Sade-(ID)-"Dercy
Gonçalvez"-mártir-da-livre-expressão provocando,
atiçando, denunciando, rebelando-se contra o Dr. Royer-Collard
(Superego), psiquiatra & totalitarista truculento.
Na encenação
teatral que denuncia a hipocrisia e as práticas libertinas de Dr.
Royer-Collard com sua esposa ninfeta, Kauffman procura traçar um
forte paralelismo entre a encenação tramada por Hamlet para
perturbar seu tio assassino e a montagem organizada por Sade. Através
dessa equiparação Sade/Hamlet, ele pretende apresentar-nos
Sade como um iconoclasta eloquente, capaz de usar o teatro como veículo
de denúncia.
6 - No embate entre Madeleine e Dr. Royer-Collard:
Entre os dois nenhuma
espécie de comércio seria possível, tanto que assim
que Dr. Royer-Collard percebe o valor que ela tem tanto para Sade quanto
para Coulmier, ele manda o capataz Couchon assassiná-la.
A vitória final
de Dr. Royer-Collard representa exatamente isso: enquanto existirem pessoas
como ele (e ele é um típico personagem sadiano: um burocrata
hipócrita, frio, violento e autoritário) atuando dentro
das intituições, elas funcionarão sempre como instâncias
criminalizantes (vide Febem), verdadeiros purgatórios carcerários
onde todo "humano" será esfacelado, humilhado, violentado
física e psiquicamente.
No final de tudo,
ao transformar o derrotado abade Coulmier num escritor depravado, violento
e encarcerado (portanto continuador de Sade), Kauffman cria o fecho humanista
de seu libelo anti-autoritário. Patético!
Imagine: conseguiu
fazer de seu Sade um mártir na luta contra o sadismo!
Sade versus Sadismo!
É pra se morrer engasgado de tanto rir!
Pra piorar (e corroborar
ainda mais esse exdrúxulo paradoxo), o diretor procura manter dentro
das seguras margens do onírico aquela cópula necrófila
do final do filme, entre Coulmier e Madeleine. O sonho necrófilo
do abade não passou de vingança de seu ID, explosão
grosseira de um desejo intenso e intensamente recalcado, confirmando a
mirada kauffmaniana: a sublimação catártica cura,
enquanto que a repressão deforma.
Não que essa
dicotomia seja impertinente, irreal ou absurda (pelo contrário,
concordo com ela), mas a fixação nela como recurso para
situar/explicar o opus sadiano é um reducionismo cômodo,
pura preguiça analítica: um BLEFE.
Ao invés de
nos apresentar um Sade à altura de seus escritos, Kauffman procura
inocentá-lo, justificá-lo, psicologizá-lo, subtraindo
do filme tudo o que há de aporético e perturbador na obra
do Marquês. Resultado: diante de um Sade fichado, etiquetado e compreendido
como "mártir da liberdade de expressão", deixamos
o cinema gratificados, tendo nossa medíocre noção
pequeno-burguesa do que seja "liberdade" confirmada e legitimada.
Pasolini permanece
então o único que (no cinema) quis, soube e fez uso do recurso
mais apropriado à uma abordagem da obra do Marquês: a paráfrase.
Marlos Salustiano
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