Preservação

Carlos Manga sempre enfatizou o choque sofrido
em seu primeiro contato com o universo cinematográfico real. Conduzido
por Cyll Farney para conhecer o estúdio da Atlântida, localizado
na rua Visconde do Rio Branco, e especialmente o diretor responsável
pelas famosas chanchadas, surpreendeu-se por encontrar este último
em mangas de camisa carregando adereços, levantando cenários,
manejando um martelo como qualquer cenotécnico. Watson Macedo não
tinha escritório de luxo, secretária bonita e simpática,
carro e chofer na porta da companhia. Traduzindo: não havia salários
nababescos e muito menos recursos de monta para a produção
e para a própria infra-estrutura do estúdio. A sobrevivência
era difícil e com conseqüências óbvias. Pouco
depois do memorável e decisivo encontro, o local sofreria um devastador
incêndio, responsável pelo desaparecimento de quase toda
a filmografia inicial da Atlântida.
Guardadas as devidas proporções,
salientadas as peculiaridades de um arquivo de filmes e indicados os contextos
diversos, passando dos anos 50 aos anos 80, pode-se dizer que tive um
choque semelhante ao tomar contato com o universo das cinematecas brasileiras.
Ao me aproximar do cotidiano da mítica Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro – Cinemateca do MAM, para os funcionários,
amigos e admiradores – vez por outra via um ou outro carrinho carregado
de filmes passar com latas desgastadas pelo tempo, as vezes amassadas,
quase sempre enferrujadas parcial ou totalmente. Descobriria mais tarde,
igualmente espantado, que quem empunhava o carrinho não era um
auxiliar, mas o próprio conservador chefe. Havia poucos, pouquíssimos
auxiliares. Mas nada se comparou à primeira incursão pela
área de armazenamento de filmes, o famoso depósito de filmes.
Na entrada a primeira surpresa: nada de luz. Explico-me: não era
oposição à essência luminosa do cinema ou mesmo
um cuidado técnico, pois a luz é um fator nocivo à
conservação de quase todos os tipos de documentos, inclusive
filmes. Era preciso simplesmente usar uma solitária gambiarra,
o que tornava o cenário de corredores estreitíssimos, traçado
irregular e estantes abarrotadérrimas e altíssimas, uma
mistura de filme expressionista e de instalação surrealista,
com direção de arte de Gaudí. Ah!, neste momento
inesquecível identifica-se também o inconfundível
cheiro de película cinematográfica, que dizem ama-se ou
detesta-se para sempre. Eu gostei.
O choque completou-se muitos anos depois
quando vi pela primeira vez o acervo da Cinemateca Brasileira, já
instalada no Matadouro. Acreditei estar vendo todas as latas naquele enorme
galpão (era só uma parte) e elas me pareceram três,
quatro, cinco vezes mais do que estava acostumado na Cinemateca do MAM.
A imagem é impactante e lembra um pouco os finais simbólicos
de Cidadão Kane e Caçadores da Arca Perdida e
suas implicações filosóficas, políticas e
culturais. De imediato me veio à mente a idéia de que tão
poucos jamais dariam conta daquilo tudo e naquelas condições
tão precárias, sabendo-se de antemão da escassez
de recursos humanos e financeiros, tecnologia, infra-estrutura adequada,
falta de cursos especializados no país e do fato de que as latas
nunca param de multiplicar-se. Alguns meses mais tarde, comecei a trabalhar
de fato em uma cinemateca, a do MAM. Naturalmente fui vendo a questão
da preservação de filmes por outros ângulos. A perspectiva
interna é mais rica, nuançada e necessariamente mais complexa.
Alguns mitos caíram por terra, certos clichês se desfizeram
e práticas mal aceitas por usuários externos ganharam justificativas
irretocáveis. Isso não significa que os problemas clássicos
deixaram de existir, seu peso é considerável no cotidiano
de um arquivo de filmes. Mas houve a compreensão de que os problemas
de natureza documental, arquivística e técnica são
parte da área, da atividade, da preservação em si.
São fatores estruturais. Esses problemas sempre existirão,
ou melhor, na verdade não existem, na medida em que são
intrínsecos. A questão real gira em torno de sua intensidade
– quando escapam ao controle, tornam-se do ponto de vista administrativo,
gerencial e logístico um obstáculo pesado e oneroso - e
principalmente da qualidade da resposta dada a eles.
* * *
Nos primeiros tempos da atividade cinematográfica
a palavra cinemateca possuía acepção bem prosaica.
Alguns dicionários do início do século XX registram
o sentido de coleção de filmes, ou seja, uma biblioteca
de filmes. O paralelo é óbvio mas traz embutido uma noção
importante, a de que o filme poderia difundir conhecimento e servir como
fonte de consulta, disponível a um público indiferenciado
para além da sua manifestação presente. Um uso específico
do registro cinematográfico como fonte histórica já
havia sido previsto desde o final do século anterior. Em 25 de
março de 1898 o cinegrafista polonês Boleslav Matuszewski
publicou em Paris um livreto intitulado Uma Nova Fonte Histórica,
em que preconizava a criação de locais destinados à
guarda seletiva de filmes, o que denominou Depósito de Cinematografia
Histórica. O trabalho como operador cinematográfico dos
Lumière despertou-lhe a consciência para o valor das imagens
que captava com a câmara, em especial as de caráter documental,
desprezando as de natureza propriamente ficcional. É considerado
muito justamente um precursor do conceito de cinemateca como espaço
de guarda de bens culturais móveis destinados às gerações
futuras.
As primeiras coleções de filmes
se formaram igualmente no início do século XX, mas não
por influência de Matuszewski. Os motivos foram bem menos nobres.
Por conta da guerra de patentes travada por Thomas Alva Edison contra
seus rivais no campo do comércio cinematográfico e pela
necessidade de um registro legal que alicerçasse um processo judicial
em torno desta ou daquela obra cinematográfica, a Biblioteca do
Congresso dos Estados Unidos (Library of Congress) começou a receber
a título de depósito legal para resguardo dos direitos de
propriedade comercial (copyright) os famosos paper prints. Por
causa da película de nitrato utilizada então, autoinflamável
sob certas condições, e da exigüidade de espaço
para dar conta do volume de produção, a Biblioteca recebia
os filmes sob a forma de tiras de papel com os fotogramas impressos, do
primeiro ao último. Não fossem os paper prints, a
filmografia norte-americana seria infinitamente menor, abreviando o conhecimento
de autores inaugurais como David Wark Griffith, Ralph Ince e Edwin S.
Porter. Deve-se a este material inclusive o desenvolvimento da primeira
experiência de restauração cinematográfica,
levada a cabo durante a Segunda Guerra Mundial pelo naturalista, cineasta,
professor e inventor de câmaras de filmar Carl Louis Gregory, que
criou uma truca capaz de reconverter os fotogramas de papel em imagem
em movimento registrada em película.
Houve outras iniciativas de caráter
isolado nesses primeiros tempos da atividade cinematográfica. Surgiram
os primeiros colecionadores de filmes, responsáveis em grande parte
pelo pouco que seria legado dos primórdios para a posteridade,
e algumas ações de natureza institucional, como a do Imperial
War Museum inglês, cuja coleção de filmes iniciou-se
logo após a Primeira Guerra Mundial. Neste campo cumpre destacar
a extraordinária e pioneira experiência brasileira com a
criação da Filmoteca do Museu Nacional em 1910. Idealizada
pelo antropólogo Edgard Roquette-Pinto para servir de repositório
da evolução dos costumes urbanos nacionais e de registro
das culturas indígenas presentes no país, a Filmoteca funcionou
durante décadas e reuniu importante coleção de filmes.
O descaso, a falta de conhecimentos de conservação de filmes
e o tempo destruíram quase todas as películas. Na década
de 60 o pesquisador Jurandyr Passos Noronha resgatou na sede da Quinta
da Boa Vista umas poucas latas originárias da Filmoteca contendo
alguns dos mais antigos títulos da filmografia brasileira, como
o Circuito de São Gonçalo, de 1910.
Frente ao conjunto da produção
mundial essas pequenas coleções, constituídas quase
sempre seletivamente, tinham o sabor de gota no oceano. A falta de um
movimento mais vigoroso quanto à salvaguarda do patrimônio
fílmico em geral, proporcionou o desaparecimento em larga escala
da maior parte dos filmes produzidos entre 1895 e 1950. Foram três
grandes ondas sucessivas de destruição. A primeira ocorreu
ao final da Primeira Guerra Mundial quando o longa metragem se consolidou
como produto preferido pelo público. Não havia mais sentido
para os produtores manter em estoque os velhos filmes de um ou dois rolos
de tamanho. Não havia mais mercado para eles. Dissemina-se nesse
momento a prática do reaproveitamento de matéria-prima,
dissolvendo-se as películas para reobtenção da prata
ou fornecimento de celulose para a fabricação de piaçava
de vassoura. A segunda grande onda de destruição ocorreu
por ocasião do advento do som a partir de 1927. Mais uma vez, o
sucesso junto ao público determinou a obsolescência precoce
de milhares e milhares de filmes reduzidos à condição
de estorvo anti-lucrativo. A terceira onda se deu em 1950 por conta da
troca da película de nitrato, inflamável, pela de acetato,
não inflamável, o que implicou em novas tecnologias de projeção
e na inadequação dos filme em nitrato frente ao panorama
que se seguiu.
Estima-se perdas consideráveis para
o cinema mudo mundial. Algo em torno de 60% a 70% da produção
teria desaparecido em definitivo. A percentagem varia da país para
país, com maior incidência em nações pobres
como o Brasil, que salvou cerca de 10% de tudo que produziu entre 1898
e 1933. A velocidade desta verdadeira tragédia cultural diminuiu
até a década de 50, com estimativas de perdas em torno de
30% do volume produzido nos países industrializados e em torno
de 50% nos países pobres. Entre um momento e o outro surgem as
primeiras discussões sobre o valor do que está desaparecendo
e sobre iniciativas a tomar para deter o processo. Influenciados pelo
impressionismo cinematográfico, que havia alçado o filme
à condição de arte autônoma, vários
críticos franceses lançam em 1933 a idéia de uma
Cinemateca Nacional. O projeto não vai adiante mas sinaliza uma
primeira conscientização quanto à necessidade de
uma preservação sistemática e em larga escala do
patrimônio cinematográfico. Este reconhecimento do cinema
como arte significa a base conceitual que permitirá o florescimento
das cinemateca nacionais ao longo da décadas de 30 e 40.
Ao longo deste período constituem-se
cinematecas apenas na Europa e nos Estados Unidos. A primeira foi o Svenska
Filmsamfundets Arkiv (Cinemateca Sueca), criado em 1933. No ano seguinte
surgiu o BundesArchiv (Cinemateca Alemã). Em 1935 foi a vez do
British Film Institute e do arquivo de filmes do Museum of Modern Art
of New York (MoMA). E em 1936 apareceu a Cinémathèque Française.
Dois anos mais tarde, estas cinematecas reuniram-se em Bruxelas e fundaram
a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF).
Longe de ser apenas um colegiado protocolar, a entidade mostrou-se decisiva
em seus primeiros tempos na formação de uma mentalidade
conservacionista. Rapidamente evoluiu do apoio ao esforço pela
salvaguarda do filme para a ação mais geral e decisiva de
conservar o cinema. Distinção sutil, a passagem da guarda
exclusiva da película ao recolhimento conjunto dela e dos mais
diferentes itens que gravitam em torno do filme como roteiros, boletins
de continuidade e de marcação de luz, cartazes, fotos, documentos
de produção, revistas de cinema e outros, configurou propriamente
a área de atuação o e perfil institucional das cinematecas
e definiu simultaneamente o cinema como documento e fato cultural em suas
múltiplas manifestações.
Conservar neste momento era entendido quase
sempre como guardar de maneira relativamente ordenada. Essa guarda desinteressada
do passado não implicava padrões rígidos de armazenamento,
não tinha fins lucrativos e não dava direitos sobre a exploração
comercial das obras, que permaneciam com os produtores originais ou seus
sucessores, tal como hoje. Práticas pouco profissionais como simplesmente
empilhar latas somavam-se a conceitos importantes no relacionamento com
a desconfiada comunidade cinematográfica. Mas o verdadeiro senão
deste momento estava na continuação da guarda seletiva.
Os novos arquivos de filmes constituíram-se principalmente como
cinematecas de caráter universal ou nacional (mais tarde apareceria
a categoria regional, especializada em determinados temas ou na produção
de uma região), destinados prioritariamente a recolher e guardar
o que melhor a arte cinematográfica tivesse apresentado nas telas
do planeta. Foi a época da busca dos títulos e autores fundamentais:
um Nosferatu, um Aurora, um Intolerância; um
Charles Chaplin, um Abel Gance, um Sergei Eisenstein. Naturalmente os
critérios para esta seleção estavam nas mãos
do diretor da cinemateca ou de seu curador e sofriam a influência
de determinadas histórias do cinema, ideologicamente traçadas.
Psicologias à parte, a questão girava em torno de uma suposta
evolução estética do cinema, naturalmente qualificante
e estreitamente vinculada ao que se fazia no Primeiro Mundo, hegêmonico
desde os primórdios em termos de tecnologia, comércio e
ideologia cinematográficas. Basta lembrar que o MoMA, uma cinemateca
de caráter universal, só se interessou por um único
título brasileiro, Limite, cujos negativos foram remetidos
para Nova Iorque e lá se deterioraram. Na dependência deste
tipo de sanção, nada mais restaria do cinema brasileiro.
E se cinematecas houvessem por aqui nos anos 30 e 40, provavelmente o
filme não seria salvo, pois foi um fracasso artístico aos
olhos das platéias de seu tempo. Como em muitos casos semelhantes
mundo afora a admiração e o esforço particulares
salvaram Limite, constituindo-se em uma das grande sagas da preservação
brasileira de filmes.
A alternativa ao julgamento de valor era
uma só: guardar tudo sem seleção. Ultrapassar a barreira
dos clássicos do cinema, no entanto, parecia dispensável
do ponto de vista teórico, pois as cinematecas estariam mais próximas
de museus que de bibliotecas, e impensável do ponto de vista prático,
já que não haveria condições para recolher
tudo o que se produzia. O cenário só começou a mudar
após a Segunda Guerra Mundial, momento em que a idéia de
guardar tudo se fortalece. Certamente o grau de destruição
visto na história recente da humanidade teve alguma influência
sobre a preservação das criações modernas,
o cinema incluído. Mas os fatores decisivos foram menos evidentes,
entre eles as concepções da chamada Nova História,
que propunha estudos menos oficiais e ligados às classes dominantes,
valorizando assim atividades distantes da política, do comércio
e da guerra, como por exemplo o lazer e seu papel junto às classes
trabalhadoras. Da mesma forma a Nova História e a Arquivologia
moderna redefiniriam o estatuto daquilo que pode ou não contar
a História, conferindo a qualquer tipo de registro em qualquer
tipo de suporte a natureza de fonte e de documento, respectivamente. Filme,
artístico ou não, clássico ou não, é
documento, portanto, fundamental para a reconstituição de
uma porção da história humana, operação
essa melhor sucedida se objetivada a partir de um conjunto e não
de alguns poucos elementos. Por fim certas formulações filosóficas,
psicanalíticas e sociológicas põem em cena a noção
de memória, instância formadora da identidade de um indivíduo
tanto quanto de uma nação. O direito à memória
cinematográfica nacional passa a ser um instrumento de luta e libertação,
em especial no chamado Terceiro Mundo. Não por acaso, a maior parte
das cinematecas do antigo Leste Europeu, da Ásia e da América
Latina surgiu entre 1945 e 1955, entre elas a Cinemateca Brasileira em
1949 e a Cinemateca do MAM em 1955.
* * *
O pós-guerra não conheceu apenas
o vertiginoso crescimento do número de cinematecas espalhadas pelo
mundo. A descoberta da magnitude das perdas anteriores teve um efeito
interno tão importante quanto a ampliação do espectro
de guarda. Estava evidente que a película cinematográfica
e seu universo de atuação tinham uma natureza frágil
e evanescente. Preservá-los implicava em uma profissionalização
dos procedimentos internos quanto à conservação,
manuseio e difusão dos filmes. Esta nova atitude face o objeto
a ser preservado dependia evidentemente de uma mudança de mentalidade
quanto ao valor de uma filmografia nacional e quanto ao papel do cinema
dentro desta ou daquela sociedade. Mais diretamente requisitava a presença
do Estado como agente político e financeiro decisivo na implementação
de uma ação de salvaguarda de algo que deveria ser considerado
patrimônio cultural nacional. Não foi por acaso que as cinematecas
criadas nesse contexto constituíram-se na esfera pública,
seja como verdadeiros arquivos nacionais de imagens em movimento, seja
como orgãos com a incumbência de zelar pelo patrimônio
cultural cinematográfico.
Eis aqui uma primeira e grande diferença
entre a origem da preservação de filmes no Brasil e em países
de características históricas, econômicas ou culturais
similares como Argentina, Portugal, Cuba e México. As cinematecas
brasileiras continuavam a tradição dos primórdios
do movimento. Eram fruto de iniciativas privadas, egressas quase sempre
de círculos como cineclubes, associações de críticos,
entidades cinéfilas. A institucionalização seguiu
os moldes do MoMA, mas pode-se dizer que a associação foi
algo fortuita. Não havia interesse real por parte dos Museus de
Arte Moderna, tanto o do Rio de Janeiro, quanto o de São Paulo
(onde a Cinemateca Brasileira inicialmente funcionou). O prestígio
de considerar o cinema uma das criações modernas, o paralelismo
com a entidade norte-americana e o retorno expressivo de público
no tocante à exibição justificavam a cessão
de algumas salas e uma pequena estrutura administrativa, mas sem considerar
seriamente um investimento de peso na conservação, catalogação
e restauração de milhares de rolos de filmes. As coleções
floresceram sem planejamento, formação de pessoal especializado,
conhecimento tecno-científico da matéria e armazenamento
adequado. Como conseqüência a Filmoteca do Museu de Arte Moderna
de São Paulo sofreu um devastador incêndio com menos de dez
anos de existência, em 1957. Em contraponto, o Gosmofilmfond (Cinemateca
da antiga União Soviética), nasceu neste mesmo período
de uma decisão de Estado e foi fortemente apoiado pelo poder público.
Desde o início tinha reservas técnicas climatizadas com
ar condicionado industrial e logo atingiu a condição de
maior cinemateca do mundo em número de títulos e rolos,
posição que ocupa até hoje.
No caso brasileiro, à falta de uma
política de apoio público, somaram-se a lenta assimilação
da profissionalização mundial quanto aos procedimentos internos
de trabalho em uma cinemateca e principalmente o desconhecimento do comportamento
físico-químico das diferentes películas fabricadas
ao longo da história do cinema, primeiro o nitrato, depois o acetato.
Estávamos marcados não só por nossa condição
de subdesenvolvimento, como principalmente, de um ponto de vista técnico,
pela localização do país em região tropical.
Temperatura e umidade elevadas e inconstantes são os vilões
imediatos da conservação de documentos, em especial películas
cinematográficas. Não que relaxamento, descaso e omissão
não se manifestassem em paralelo e tivrssem dado também
sua contribuição decisiva ao desaparecimento de boa parte
da filmografia brasileira. No período pré-cinematecas, o
que escapava ao reaproveitamento ficava encostado em depósitos,
sotãos, galpões e similares, muitas vezes sob telhados de
zinco, quase sempre sem qualquer cuidado especial dos funcionários
das produtoras. Nada sobrou do que foi produzido entre 1898 e 1909. Dois
dos mais prolíficos produtores dos primórdios, Paschoal
Segreto e Francisco Serrador, perderam seus acervos em incêndios
de casas de espetáculos, o do velho cine-teatro Carlos Gomes em
1929 e o do cinema Alhambra em 1940, respectivamente. Alberto Botelho,
nosso cinegrafista de atualidades mais produtivo, viveu a tragédia
pessoal de dois incêndios em laboratórios próprios,
um em 1924 e o outro em 1940. Quase todos os velhos estúdios viram
seus acervos arderem em chamas – Sonofilmes em 1940, Atlântida em
1952 e Brasil Vita Filmes em 1957. O mesmo ocorreu com grandes produtores
de cinejornais e institucionais do pós-guerra, como Isaac Rozemberg
e Herbert Richers, que viram seus acervos anteriores a 1963 desaparecerem
quase por completo. Da mesma forma a Filmoteca do Serviço de Informação
Agrícola (SIA), constituída informalmente em 1939 sob a
iniciativa do crítico de cinema Pedro Lima, cinegrafista do orgão,
e que pode ser considerada a primeira cinemateca de fato do país,
pois coletava sistematicamente o passado cinematográfico brasileiro,
não escapou a mais um incêndio, ocorrido em 1952. Dos pouquíssimos
títulos sobreviventes constava o único registro fílmico
de Noel Rosa e do Bando dos Tangarás, recentemente redescoberto
e exibido. Os incêndios do SIA e da Filmoteca do MAM-SP destruíram
boa parte do que ainda restava àquela altura do cinema mudo brasileiro.
* * *
Preservar filmes significa coletar, identificar,
documentar, estabilizar, recuperar fisicamente, restaurar técnica
e esteticamente, transferir para novos suportes de guarda, conservar,
catalogar, difundir e disponibilizar para consulta permanente, entre outras
tarefas associadas. Mesmo longe do ideal, este trabalho pode ter uma enorme
influência na vida de uma comunidade e mesmo de uma sociedade. Basta
pensar na precariedade das cinematecas brasileiras no começo dos
anos 60 e na sua participação direta e indireta no movimento
do Cinema Novo. Como centros de formação estética,
discussão artística e política e base de produção
e finalização, atraíram a atenção daquele
grupo de jovens e depois da comunidade cinematográfica e da sociedade
em geral, estimulando os primeiros depósitos voluntários
de filmes recentes, servindo de referência confiável para
o envio de velhos títulos e sedimentando a tradição
cinematográfica brasileira junto a um público maior. Neste
momento as cinematecas tinham o status de centros geradores de
cultura em sentido amplo, refletindo o bom momento da atividade cinematográfica
e participando ativamente dele. Se isto ajudou no crescimento ou na reconstituição
das coleções e no fortalecimento de uma identidade para
o setor, não melhorou as condições de guarda e muito
menos promoveu de início uma profissionalização do
trabalho interno. Os problemas permaneciam praticamente os mesmos dos
primórdios.
Mas quais problemas permaneciam os mesmos?
Visto em perspectiva histórica, o trabalho de preservação
naquele momento implicava principalmente em tarefas arquivísticas
clássicas, como inventariamento da coleção, acondicionamento
em padrões rigorosos de conservação (temperatura
e umidade controladas) e na transferência das matrizes (negativas
ou positivas) em nitrato para película de segurança, por
conta do risco de incêndio e por crença de que essa simples
operação já representava uma preservação
mais adequada, o que se revelaria um equívoco posteriormente. O
inventariamento era sumário, o acondicionamento não existia
e a transferência era feita, quando os recursos o permitiam, em
laboratório comercial, o que foge aos padrões de processamento
recomendados para a confecção de matrizes mais duráveis,
pois a rotina empresarial difere profundamente dos requisitos necessários
à geração de materiais estáveis do ponto de
vista físico-químico. Nesse sentido, os problemas permaneciam
os mesmos, mas começariam em breve a serem atacados de frente,
não com vistas à sua resolução definitiva,
pois descobriria-se em breve que a deterioração de películas
é natural, irreversível e começa no ato da fabricação,
mas ao controle das diversas variáveis que interferem em dada situação,
viabilizando-se soluções possíveis para as dificuldades
encontradas. Para tanto era preciso realizar um amplo e abalizado diagnóstico
da situação brasileira.
De outro lado, o notório desinteresse
do Estado brasileiro pela preservação de filmes começou
a sofrer lentas transformações. Na passagem do antigo Instituto
Nacional de Cinema Educativo para o Instituto Nacional de Cinema, criou-se
a primeira reserva técnica climatizada para guarda de filmes no
Brasil, destinada a abrigar principalmente a filmoteca da instituição.
Embora longe de parâmetros ideais, era um primeiro passo com vistas
à estabilização do acondicionamento de uma coleção.
Mais tarde, a Embrafilme, sucessora do INC, tornou-se a principal financiadora
dos projetos de remodelação e modernização
das cinematecas, promovendo a compra de equipamentos, a adaptação
e refrigeração de reservas técnicas e a duplicação
e restauração de inúmeros títulos. Ao idealizar
seu centro de apoio técnico à produção, desenvolveu
o primeiro projeto de uma área especialmente desenhada e construída
para a guarda de filmes no Brasil, o Arquivo de Matrizes do CTAv. Idealizado
sob orientação de João Sócrates de Oliveira,
então chefe do laboratório de restauração
da Fundação Cinemateca Brasileira, o local pretendia ser
uma unidade modelo em termos de engenharia civil, refrigeração
e desumidificação e mobiliário de guarda. Inaugurado
em meados dos anos 80 como setor da Fundação do Cinema Brasileiro
(atual Funarte), representou um marco técnico importante e uma
solução intermediária, considerando parâmetros
rígidos, e de relativo baixo custo. Tem demonstrado bom desempenho
na conservação de um acervo formado basicamente por produção
dos últimos vinte anos. Em duas ou três décadas, este
modelo demonstrará sua eficiência ou suas limitações.
A presença do Estado ainda pode ser
sentida na normalização da situação institucional
da Cinemateca Brasileira, que saiu da esfera privada e virou uma autarquia
federal em 1984, conservando, porém, a natureza e autonomia de
uma fundação de direito privado. A esfera pública
ainda proporcionou-lhe uma sede definitiva em 1985, após décadas
de peregrinação pela cidade de São Paulo e sucessivos
incêndios, embora de proporções menores do que o de
1957. Contudo, nenhum desses fatores talvez tenha tido tanto impacto sobre
a qualidade das rotinas internas como o conhecimento mais abalizado e
atualizado sobre a deterioração em si: suas origens, manifestações,
formas de controle e principalmente prevenção. O entendimento
do processo como um todo e do grau de interferência de instâncias
como a catalogação, o acompanhamento técnico rolo
a rolo e a restauração, permitiram pela primeira vez um
mapeamento preciso do estágio em que se encontrava o problema,
sua natureza específica e as soluções adequadas para
o acervo da instituição, o que permite planejamento a longo
prazo e consequentemente controle de resultados. Este conhecimento foi
obtido com a pioneira ida de Carlos Augusto Machado Calil ao FIAF Summer
School de 1976, realizado no Staatlichesfilmarchiv (Cinemateca da antiga
Alemanha Oriental). Já no ano seguinte a Cinemateca Brasileira
inaugurava seu Laboratório de Restauração, criando
um diferencial de qualidade para a produção de novas matrizes,
e montava a infra-estrutura que proporcionou o início da catalogação
em larga escala não só de seu acervo, como de toda a filmografia
brasileira (os guias referentes ao período 1897-1930 foram editados
na década de 80 e o projeto está sendo retomado agora como
Censo Filmográfico Brasileiro).
O mesmo estágio foi fundamental para
a Cinemateca do MAM. A permanência de um ano de Francisco Sérgio
Moreira em Berlim Oriental, complementada mais tarde com igual tempo passado
no UCLA Film and Television Archive, deu-lhe a convicção
e os conhecimentos necessários para implementar a climatização
do acervo em parâmetros semelhantes aos do CTAv e almejar também
uma unidade laboratorial para higienização e duplicação,
com ênfase na restauração de originais no limite do
desaparecimento (grau elevado de abaulamento, encolhimento ou desbotamento
e outros danos). As mudanças aqui, entretanto, foram mais restritas
em função do incêndio que atingiu o prédio
principal do Museu (o acervo de filmes não foi atingido, apenas
a sala de exibição original da Cinemateca foi danificada)
e a conseqüente paralisação da maioria das atividades
da instituição. O contexto econômico adverso dos anos
80 e a permanência da Cinemateca do MAM na esfera privada acabaram
por limitar a reforma estrutural necessária.
Houve igualmente em ambas as instituições
a reprodução da famosa querela fiafiana entre os dirigentes
que advogavam o primado da exibição sobre a preservação
e vice-versa. A falsa questão aflorou nos anos 70 por conta dos
métodos de Henri Langlois, fundador da Cinémathèque
Française. Famoso por sua defesa intransigente do cinema como arte
e do direito dos filmes sobreviverem, além da influência
que exerceu sobre a formação da geração da
Nouvelle Vague, conduziu a cinemateca de forma personalista até
sua morte em 1977, não permitindo a modernização
dos trabalhos internos, em particular nos campos da conservação
e catalogação, que, diziam, odiava. O resultado não
se fez esperar. Um violento incêndio tomou conta dos depósitos
do Pontel em 1980, causando a perda de cerca de dez mil títulos
e uma das imagens mais impressionantes que já vi de acidentes na
área, milhares de latas e rolos carbonizados espalhados em um raio
de quilômetros. A partir da catástrofe o governo francês
investiu seriamente na recuperação da instituição
e com a posse em 1982 do cineasta Constantin Costa-Gravas como diretor
da cinemateca, realizou-se um enorme e fundamental trabalho de catalogação
do acervo, abrindo-se lata por lata e registrando-se os dados técnicos
e de conteúdo dos materiais. A formação desse banco
de dados, aliada à revisão periódica e sistemática
da coleção, representa o ponto de partida para um gerenciamento
profissional de qualquer cinemateca. O conhecimento da natureza do acervo,
seus problemas e estágios de deterioração, permite
gerenciar tempo e recursos, otimizando os trabalhos internos e os sempre
escassos investimentos externos.
O mesmo ocorreu com a Cinemateca Brasileira
nos anos 80 e está ocorrendo agora com a Cinemateca do MAM. Sem
isto o impacto da quarta onda de destruição, a que aflorou
da recente descoberta de que o acetato deteriora de forma mais rápida,
disseminada e violenta do que o nitrato, teria sido bem maior. Todo um
conhecimento acumulado quase sempre empiricamente mundo afora vem sendo
modificado nos últimos quinze anos pela pesquisa científica
sistemática do comportamento da película frente ao seu microambiente
(a lata ou estojo) e ao seu macroambiente (a reserva técnica e
a cidade em que se localiza o arquivo). Se nos anos 70 era possível
ler que o nitrato explodia e podia deteriorar o acetato com seus gases
nítricos, e que o acetato deveria permanecer envolto em plástico
e lacrado em sua lata original, hoje sabe-se que tanto um quanto o outro
liberam gases tóxicos e contaminantes, que os acervos devem ser
separados, que a exaustão é tão fundamental quanto
a climatização e que a redução da velocidade
da deterioração está intimamente relacionada com
a queda da temperatura de guarda. Estar preparado para separar o acervo
por suporte e estágio de deterioração permitiu à
Cinemateca Brasileira a reordenação rápida das práticas
internas e principalmente o planejamento de soluções definitivas
(frente ao conhecimento atual). Pela primeira vez na história da
preservação de filmes no Brasil, está se buscando
o diferencial de qualidade para a sobrevivência da filmografia brasileira.
Pela primeira vez entrou em cena a possibilidade de uma preservação
de longo prazo (em termos arquivísticos nunca inferior a um século).
Com a inauguração recente do novo depósito climatizado
da instituição, os materiais com baixo nível de deterioração
poderão ser guardados a baixas temperaturas (10ºC), ganhando a
perspectiva de chegarem inteiros ao século XXII, permitindo assim
a aplicação dos recursos disponíveis a um maior número
de títulos ameaçados por mais tempo.
* * *
O Estado brasileiro continua distante do
universo da preservação de filmes.
Há falta de vontade política
e suporte financeiro por parte da sociedade, da classe cinematográfica,
dos poderes públicos.
Não há legislação
específica de proteção ao bem cinematográfico
brasileiro.
As cópias de exibição,
brasileiras e estrangeiras, são sistematicamente destruídas
em sua maior parte após a exploração comercial.
A lei de depósito legal de títulos
brasileiros raramente é cumprida por parte dos produtores.
Não há lei de depósito
legal para títulos estrangeiros.
Não há legislação
prevendo o repatriamento de matrizes de filmes brasileiros que se encontram
no exterior.
O Brasil está mais quente e mais úmido,
consequentemente provocando mais acidificação, fungos e
bactérias nas películas.
O filme virgem em preto e branco está
cada vez mais caro e raro, implicando no uso de filme colorido para obras
originalmente realizadas em tons de cinza.
A importação de filme preto
e branco para fins de preservação não tem qualquer
redução de tarifa ou imposto.
Não há escolas de formação
de pessoal técnico especializado na preservação de
filmes no Brasil.
O filme colorido tem problemas mais graves
de preservação por conta do desbotamento dos corantes.
O Brasil ainda não restaura filmes
coloridos.
Não há estudos sobre o impacto
dos meios eletrônicos sobre a restauração de filmes.
É preciso cuidar de todos os filmes
e não apenas restaurar este ou aquele título.
As cópias de filmes brasileiros deveriam
ser distribuídas, após a exploração comercial,
por instituições sem fins lucrativos espalhadas pelo país,
resguardando-se os direitos dos produtores, economizando-se em fretes
sempre caros, e difundindo o cinema e a cultura brasileiros junto a platéias
que raramente tem oportunidade de ir a uma sala de exibição.
Que a difusão tenha compromisso com
a preservação e com o público.
Que os poucos recursos sejam bem aplicados
onde quer que seja necessário.
Hernani Heffner
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