Uma nova fonte histórica

Paris, 25 de março de 1898

Senhor,
Permita-me chamar a sua atenção para o projeto que você encontrará aqui exposto, cuja execução já está preparada e pelo qual gostaria de despertar seu interesse. Trata-se de definir um destino de interesse geral a uma coleção de documentos cinematográficos recolhidos em circunstâncias muito particulares e que despertaram grande interesse nos lugares em que me foi permitido apresentá-los.
Eu lhe serei muito grato caso me comunique, por via do seu jornal ou qualquer outra, as reflexões, as críticas ou os olhares novos que esse projeto pode lhe sugerir, e me coloco à sua disposição para todas as informações complementares que você possa desejar.
B. M.

O lugar da fotografia animada entre as fontes históricas

Acreditávamos, erradamente, que todos os gêneros de documentos figurativos que se tornassem históricos teriam seus lugares nos Museus e nas Bibliotecas. Colocada ao lado de selos, medalhas, desenhos sobre cerâmica, esculturas e etc., que são recolhidas e classificadas, a fotografia, por exemplo, não tem seu departamento específico. Na verdade, os documentos que ela oferece raramente têm uma informação histórica relevante, e sobretudo, é documento demais! Enquanto isso, um dia ou outro classifica-se em série os retratos dos homens que agiram de forma marcante na vida de seus tempos. Mas isso não será então mais que um retorno em marcha-à-ré, porque desde agora a questão já é de ir além neste sentido – portanto, dentro das esferas oficiais, foi aprovada a idéia de criar em Paris um Museu ou Depósito Cinematográfico.

Obrigatoriamente restrita no seu começo, esta coleção ganharia uma extensão cada vez maior à medida que a curiosidade dos fotógrafos cinematográficos trouxesse cenas simplesmente de diversão ou fantasistas, além das ações e espetáculos de interesse documental e de entrechos de vida divertida, além dos entrechos de vida pública e nacional. De simples passatempo, a fotografia em movimento se tornará então um método agradável para o estudo do passado; ou, mais ainda, uma vez que ela trará a visão direta, ela suprimirá, ao menos para certos pontos que têm sua importância, a necessidade de investigação e de estudo.

Por outro lado, ela poderá se tornar um método de ensino singularmente eficaz. Dos textos de vaga descrição oferecidos pelos livros destinados à juventude, um dia poderemos chegar a ter numa sala de aula, em um quadro preciso e em movimento, os aspectos mais ou menos importantes de uma assembléia em deliberação, o encontro de chefes de estado próximos de selar alianças, um deslocamento de tropas ou de esquadras ou mesmo a fisionomia inconstante e móvel das cidades. Mas é necessário que se passe um longo tempo antes que possamos recorrer a essa fonte auxiliar de para o ensino de História. É preciso de imediato armazenar a história pitoresca e exterior, para a empregar mais tarde, sob o olhos dos que não a testemunharam.

Uma dificuldade poderia frear por um instante este espírito: é que o fato histórico se produz nem sempre onde se espera por ele. Seria preciso que a História se compusesse unicamente de solenidades preparadas e que se organizassem previamente, prontas a posar diante da objetiva. São os inícios de ação, movimentos iniciais, e os fatos inesperados que se escondem do registro do aparelho fotográfico... como, de resto, escapam às informações.

– Sem dúvida os efeitos históricos são sempre mais fáceis de serem registrados que as causas. Mas as coisas se esclarecem umas pelas outras; estes efeitos, expostos no grande dia da cinematografia, jogarão nos espíritos vislumbres muito vivos sobre as causas guardadas na sua penumbra. E se apoderar não de tudo que o for, mas de tudo que puder ser apanhado, esse será já um excelente resultado para qualquer gênero de informação, científica ou histórica. Mesmo a relações orais e os documentos escritos não nos esclarecem totalmente a ordem dos fatos com que se relacionam, e mesmo assim a História existe, apesar de tudo verdadeira em suas linhas gerais, mesmo que seus detalhes sejam freqüentemente falsos. Além disso, o fotógrafo cinematográfico é indiscreto por natureza. À espreita em todas as suas ocasiões, seu instinto o fará adivinhar freqüentemente onde se passarão os fatos que se transformarão em causas históricas. É provável que seja mais comum ter que limitar seus excessos de zelo do que, ocasionalmente, deplorar sua timidez. Em pouco tempo, a curiosidade do espírito humano e o incentivo do lucro, reunidos, o deixarão inventivo e ousado. Autorizado em circunstâncias um pouco solenes, ele se misturará sem autorização entre os outros, e saberá quase sempre encontrar as ocasiões e lugares onde se elabora a história do amanhã. Um movimento popular ou uma revolta se iniciando não o amedrontarão, e mesmo numa guerra se pode imaginá-lo apontando sua objetiva para as mesmas muralhas que os fuzis do mais forte e surpreendendo ao menos um pedaço da batalha. Por todos os cantos onde reluzir um raio de sol, ele passará carregando ela...Se, para o Primeiro Império e para a Revolução por exemplo, nós tivéssemos somente a reprodução das cenas que a fotografia animada pode facilmente render à vida, quantos mares de tinta inútil poderiam ter sido guardados para questões complementares talvez mais interessantes, apaixonantes mesmo!

Portanto, a prova cinematográfica, onde uma cena se compõe de mil quadros, e que, repassada entre um foco luminoso e uma tela branca, faz se apresentarem e andarem os mortos e os ausentes, essa simples fita de celulóide impresso constitui não somente um documento histórico, mas uma parcela da história, e de história que não desapareceu, que não precisa de um gênio para a ressuscitar. Ela está lá recolhida e, como a esses organismos elementares que, vivendo de uma maneira latente, se reanimam depois de anos sob um pouco de calor e de umidade, não lhe é preciso, para acordar e viver novamente as horas do passado, mais do que um pouco de luz atravessando uma lente em meio à escuridão!

Característica particular do documento cinematográfico

O cinematógrafo talvez não dê a história integral, mas traz ao menos aquilo que num livro é incontestável e de uma absoluta verdade. A fotografia ordinária admite o retoque que pode chegar até à transformação. Mas tentem então retocar, de maneira idêntica para cada figura, estes mil e doze centenas de quadros quase microscópicos...! Pode-se dizer que a fotografia animada tem um caráter de autenticidade, de exatidão, de precisão, que só a ela é possível. Ela é por excelência a testemunha ocular verídica e infalível. Ela pode controlar a tradição oral e, se os testemunhos humanos se contradizem sobre um fato, colocá-los de acordo silenciando aquele que ela desmente. Suponham uma manobra militar ou naval, na qual o cinematógrafo registrou as fases, uma discussão começada; ela será terminada rapidamente... Ele pode dar com uma exatidão matemática as distâncias os pontos das cenas que ele registra. Na maioria das vezes ele mostra através de indícios bem claros a hora do dia, a época, as condições climáticas nas quais o fato se produziu. Mesmo o que escapa aos olhos, o progresso imperceptível das coisas em movimento, a objetiva o surpreende, desde seu início perdido no horizonte até o ponto mais próximo em primeiro plano na tela, Em suma, seria desejável que os outros documentos históricos tivessem todos este mesmo grau de certeza e de evidência.

Constituição do Depósito de Cinematografia Histórica

Trata-se de dar a esta fonte talvez privilegiada da História a mesma autoridade, a mesma existência oficial, o mesmo acesso dado aos outros arquivos já conhecidos. Isto faz parte das mais altas esferas do estado, e os caminhos e meios não parecem, de resto, muito difíceis de serem encontrados. Bastará garantir às provas cinematográficas que tiverem uma característica histórica uma seção de Museu, uma área de Biblioteca, uma área dos Arquivos. O depósito oficial será instalado junto à Biblioteca Nacional, ou à do Instituto, sob a guarda de uma das Academias que se ocupam da História, ou nos Arquivos, ou ainda no Museu de Versalhes. Ainda se irá escolher e decidir. Uma vez a fundação criada, as remessas gratuitas ou mesmo interessadas não pararão de chegar . O preço do aparelho de recepção cinematográfica à base de rolos peliculares, bastante elevado nos primeiros dias, diminui rapidamente e tende a cair até as possibilidades dos simples amadores de fotografia. Vários entre eles, sem contar os profissionais, começam a se interessar pela aplicação cinematográfica desta arte e não querem nada mais que contribuir para constituir a História. Os que não trouxerem sua coleção poderão ser voluntários para cuidar do legado. Um comitê competente receberá ou afastará os documentos oferecidos, após apreciar seu valor histórico. Os rolos negativos que forem aceitos serão selados dentro de estojos, etiquetados, catalogados; serão os tipos nos quais não se tocará. O mesmo comitê decidirá as condições nas quais os positivos serão disponibilizados e colocará em reserva os que, por razões de conveniência particular, só poderão ser liberados ao público após uma certa temporada de comercialização. Será feito o mesmo para certos arquivos. Um conservador do estabelecimento escolhido tomará conta desta nova coleção pouco numerosa a princípio, e uma instituição de futuro será fundada. Paris terá o seu Depósito de Cinematografia Histórica.

Primeiras bases da Fundação imaginada

É uma criação que se impõe e será feita em qualquer grande cidade da Europa cedo ou tarde. Eu gostaria de contribuir para o enriquecimento desta em que fui tão bem acolhido. E aqui eu peço para entrar modestamente em cena.

Fotógrafo do Imperador da Rússia, eu pude, sob a ordem expressa do próprio imperador, registrar ao olhar do cinematógrafo, entre outras situações curiosas, as cenas importantes e os incidentes familiares da visita a Petersburgo do Presidente da República Francesa, em setembro de 1897.1

Estes rolos que uma iniciativa vinda tão do alto me havia permitido registrar foram projetados diante dos seus olhos; em seguida, pude, dentro de uma série de apresentações consecutivas, oferecer o mesmo espetáculo aos soldados das casernas de Paris. Fiquei surpreso e encantado pelo efeito produzido sobre estes espíritos simples, com os quais eu tivera a chance de descobrir , com esta realmente genuína manifestação nacional que é esta organização de solenidades tão novas para eles, a fisionomia de um povo e de um país estrangeiros.

Eu proponho esta primeira série, até banal, de rolos cinematográficos como base para o estabelecimento do novo Museu. Fico muito feliz por ter convencido pessoas de considerável autoridade, e, com este apoio, possivelmente logo terei visto serem fundados em Paris estes arquivos de um novo gênero.

Já expus por que prevejo para eles um desenvolvimento fácil e rápido. Eu mesmo contribuirei para isto. Além das cenas que mencionei, tenho já da minha parte várias outras a oferecer, relativas à coroação de Sua Majestade Nicolau II, às viagens pela Rússia de dois outros imperadores e ao Jubileu da Rainha da Inglaterra. Nos últimos tempos, pude registrar em Paris alguns eventos bastante imprevistos e empolgantes. Eu me proponho a recolher pela Europa e enviar ao futuro depósito a reprodução de todas as cenas que me pareçam apresentar um interesse histórico.

Meu exemplo será imitado... se vocês realmente quiserem encorajar esta idéia nova mas tão simples, sugerindo a outros que a complementem, e sobretudo dando a ela toda divulgação que for necessária para que ela seja viva e fecunda.

Boleslav Matuszewski

(Tradução de Daniel Caetano)


1. A projeção de um desses rolos acabará refutando de forma indiscutível uma afirmação falsa, mostrando um erro de conduta que se imaginava ter sido cometido em tais conjunturas. Certamente a coisa tinha a sua pequena importância, mas, enfim, este é apenas um exemplo dos serviços que a fotografia animada poderá prestar à verdade, controlando os testemunhos dos homens. É todo um lado anedótico que no entanto foge da fantasia dos narradores.