Troma: o pior é que é sério



Ano passado, o Festival do Rio BR apresentou uma retrospectiva de John Waters, diretor norte-americano famoso pelo seu cinema trash, de mau gosto. Eis que em 2001 nos chega a mostra da produtora americana Troma, menos famosa fora dos EUA, mesmo que pelos mesmos motivos. Se somamos a isso a presença em anos consecutivos de mostras de Gillo Pontecorvo e Francesco Rosi, poderíamos concluir que trata-se de um festival temático, misturando sempre o cinema barato americano com o cinema político italiano. Não é o caso. E o que indica isso não é tanto a pura e simples coincidência, mas o fato de que tanto a mídia como a própria divulgação do festival não perceberam o principal nesta conjunção: as obras realmente políticas eram as dos americanos.

Em 2000 dedicamos um artigo a tentar ver como a obra de Waters era muito maior do que o que se falava dela, do que a pecha criada para rotular o diretor. Seria o caso de fazer o mesmo de novo? Parece repetitivo, mas talvez sim. Porque continua faltando aos nossos "repercussores midiáticos" (ou seja, os jornalistas mesmo) passar do press release mais óbvio, ir mais a fundo no que lhes é apresentado e questionar sentidos. E enquanto isso faltar, teremos que bater nas mesmas teclas.

Não é preciso falar muito sobre o que representa o grande cinema americano comercial como modelo de comportamento e produção no mundo todo. O que se fala e conhece bem menos são justamente estes esforços de reação ao modelo dominante que representam tanto o trabalho ultra-independente de Waters quanto o dos criadores da Troma. O fato de que eles optem pela estética do lixo, pelo choque do tosco, não é apenas uma curiosidade engraçadinha, como pode achar o leitor incauto do jornal diário. Esta opção é em si um ato político forte, transgressor numa sociedade obcecada pelo belo, pelo funcional, pelo bem estar geral, pela aparência. E isso não é discurso de interpretador de obra alheia, isso é o que os realizadores falam abertamente a quem quiser ouvir.

O que havia em Waters era uma aberta louvação do feio, do errado, do sujo, do proibido, como modelo alternativo à submissão a um ideal de sociedade. Os rapazes da Troma, até mesmo por representarem uma produtora, portanto um coletivo de realizadores, não podem ser elogiados por tamanha coerência em suas obras. Mas, talvez, esta sua irregularidade seja ainda mais interessante do que os filmes que fazem em si, porque representa justamente a tentativa de criar uma "empresa lucrativa" (portanto, nos moldes da sociedade capitalista) investindo contra o sistema. Por isso todos os produtos "Troma" possuem sempre esta face dupla: de contestação e de muita ironia ao vender-se como produto. Neste assunto, o principal é sempre a enorme auto-crítica presente nos seus textos e anúncios, mostrando que, talvez ao modelo de um Nirvana que assinava com uma grande gravadora enquanto denunciava o podre sistema que isso representava, é possível travar a guerrilha de dentro, com as armas do inimigo. Por que não? Aos que duvidem da seriedade de propósitos, tanto quanto da auto-ironia da empresa, basta checar esta entrevista online de um dos fundadores da produtora. Tente ler isso e continuar achando que a Troma é "aquela produtora que faz uns filmes engraçados e toscos".

O que é importante ressaltar é que quando Lloyd Kaufman e Michael Herz abrem a Troma, em 1974, eram inúmeras as iniciativas parecidas, filhotes da contracultura com a mais desbragada cultura pop. Só que, quase 30 anos depois, só restam eles no horizonte deste tipo de empreitada, e por isso é importante olhar para seus filmes e suas idéias com respeito, porque alguma coisa eles estão fazendo de correto.

O principal "produto" Troma é mesmo o Vingador Tóxico, personagem surgido num filme que deu origem a uma série, tamanho o sucesso que fez. Analisar esta série é entender um pouco o caminho trilhado pela produtora como um todo. O primeiro filme, O Vingador Tóxico, de 1985, é provavelmente um dos mais perturbadores retratos da América "dourada" que se filmou, algo que faria corar alguém como Todd Solondz. Há em cada seqüência deste filme uma fala, uma imagem que mostra o potencial de fascismo por trás do "sonho americano". É a história de um completo nerd que acaba se tornando um super-herói às avessas (porque nojento e anti-estético), e que livra uma cidade (Tromaville) da corrupção que a assola. É uma paródia ao modelo americano de sociedade, uma ode aos excluídos, mas sempre com um destruidor senso de humor. Está lá toda a parte que tornou a Troma famosa: o sexo gratuito (embora exista em cada cena destas um verdadeiro olhar metalingüístico que brinca com a própria gratuidade das cenas) e as cenas de violência exacerbada e grotesca. Mas, além de aparecerem sempre como "complementos necessários" deste modelo de sociedade, há também um tom acima, ridículo e inacreditável, em cada uma destas cenas. Tom este que busca tirá-las da vala comum da "excitação" e fazê-las algo de perturbador, de inaceitável ao espectador. Trata-se de um filme ainda hoje impressionante.

O filme acabou sendo o grande sucesso do estúdio, gerando desde uma revista em quadrinhos a um desenho animado. A partir dele foram filmadas duas seqüências, ambas em 1989. A mudança de tom é quase total. Vendo que possuía um produto rentável em mãos, Kaufman (que não esconde de ninguém seu tino comercial, embora a serviço de uma ideologia) aumentou as cenas de sexo, e principalmente da violência "gore" risível que fazia a fama de seus filmes. A cada filme parece haver um concurso de "quão longe eles conseguem ir agora". Acima de tudo, Kaufman admite com estes filmes que parte de sua platéia é um público "educado" que busca na Troma uma diversão cult. Para satisfazê-los, os filmes passam a ter um tom eminentemente satírico, cheio de piadas paródicas do próprio cinema, que lembra um pouco os então muito bem sucedidos filmes de Zucker, Abrahams e Zucker (Top Secret ou Apertem os Cintos... o Piloto Sumiu). Falta porém a estas seqüências o ritmo para compor um bem sucedido filme neste estilo, e parecem trabalhos deslocados e equivocados.

Tanto assim que no filme que retomou a série, em 1999, a narração inicial pede desculpas pelas duas seqüências lamentáveis que o filme original teve, na mais típica auto-ironia Troma. Aqui, Kaufman retoma de onde parou, reagindo ainda ao efeito do politicamente correto desta década passada. Já na primeira seqüência ofende desde mexicanos a negros e aleijados, propondo uma verdadeira orgia de mau gosto e falta de vergonha. O filme é, mais uma vez, excessivo, longo, mas retoma com tudo a crítica mordaz aos temas do momento (desde videogames a massacres em escolas, passando pelo rap como forma de expressão e a questão das drogas). Consegue ser de novo perturbador ao extremo, difícil mesmo de assistir. Mostra que a Troma é tudo menos "diversão inofensiva".

A série do Vingador Tóxico, com estas variações, exemplifica bem o que é a Troma desde o início: uma empresa que tenta sobreviver comercialmente de, basicamente, explorar ao extremo e sem medo tudo que está subexposto pelo imaginário hollywoodiano. O próprio Kaufman acha que os efeitos destes quase 30 anos de trabalho são sentidos até em Hollywood, em filmes como Quem Vai Ficar com Mary?, ou mesmo na aceitação de trabalhos como South Park, cujos criadores (Trey Parker e Matt Stone) estrearam em longa metragem num filme da Troma, Canibal - o Musical, de 1996, que em tudo anuncia os trabalhos que fariam daí em diante.

Dentre todos, porém, talvez o filme mais impressionante da produtora seja mesmo Um terror de equipe que o próprio Kaufman dirigiu em 1999. Serve como cartão de visitas e declaração de intenções. Neste, ele satiriza o tempo todo a si mesmo e à Troma (mostrando o alto grau de auto-crítica que possui), enquanto solta bombas seguidas sobre a TV, Steven Spielberg, cinema de arte, comercialismo, linguagem cinematográfica, espectadores de filmes da Troma, etc. Não existem fronteiras e tudo pode ser escrachado, subvertido. Este espírito é o que melhor define a Troma: uma companhia sem medo de ser exagerada, desavergonhada, odiada. Uma crença no cinema como válvula de escape para a crítica, tanto quanto para a subversão completa do sistema. Sempre com muito humor.

É claro que você pode tomar minha palavra de que é isto que caracteriza a Troma, ou acreditar que são uns americanos engraçadinhos e de mau gosto. Parabéns ao Festival do Rio por trazer em anos seguidos John Waters e Troma, sabendo ou não o tamanho do sacrilégio feito. Azar o de quem não entendeu o quão fantástico era ver a sala 3 do Estação, templo do "bom cinema de arte", tomada por tamanhas sandices ao longo de 10 dias. Uma intervenção melhor do que Lloyd Kaufman jamais poderia imaginar.


Eduardo Valente