Corrida Sem Fim, de Monte Hellman
Two-Lane
Blacktop, EUA,
1971

Corrida Sem Fim,
de Monte Hellman
É
já na primeira seqüência de Corrida Sem Fim que
somos apresentados ao peculiar universo onde a trama irá se desenrolar:
um universo de motores envenenados e máquinas possantes, um universo
que só pode se tornar concreto com fumaça de canos de descarga
e racing cars, veículos diminuídos aos seus esqueletos
para desempenharem o máximo possível nas estradas. Sem dúvida
um universo perigoso, que nas mãos de um Dominic Sena ou de um
George Miller poderia resultar numa obra de valores duvidosos. Mas nas
mãos de Monte Hellman, Corrida Sem Fim se faz um dos mais
importantes e representativos títulos do cinema americano dos últimos
30 anos.
Logo
no início somos apresentados aos personagens do Piloto e do Mecânico
(é desta maneira que são creditados). Ambos dividem um Chevrolet
'55. Observamos a preparação e a execução
de uma corrida. Após a corrida, surgem os créditos. Vemos
apenas os faróis de um carro iluminando uma pista, seguindo em
velocidade acelerada ao som de alguma música que toca no rádio
(qualquer semelhança com A Estrada Perdida não deve
ser interpretada como mera coincidência).
Acompanhamos
por um breve tempo o cotidiano dos dois rapazes. Eles raramente conversam,
e quando o fazem é para falar sobre o carro, sobre algum problema
de alguma peça ou para combinar os detalhes de uma corrida. A austeridade
na mise en scène de Hellman é um traço muito
forte: não foi apenas o carro que eles desmontaram até chegar
ao mínimo necessário para desempenhar o máximo nas
tais corridas, mas também suas vidas e seu relacionamento.
Seguimos
pela estrada com o Piloto e o Mecânico. Param numa lanchonete de
posto de gasolina. Nesta parada é introduzida a Garota. Aparentemente
sem destino, ela resolve pegar carona com os rapazes. Uma quebra no universo,
uma pessoa a mais para seguir viagem.
Haverá
ainda mais uma quebra no universo do Piloto e do Mecânico: a entrada
em cena de G.T.O., um homem de meia-idade que cata "caroneiros" pelas
rodovias por onde anda e inventa histórias sobre seu passado (que,
por sinal, se confunde com a história do seu país). G.T.O.,
o Piloto e o Mecânico apostam uma corrida até a cidade de
Washington. E é a corrida, a batalha e o embate entre todos estes
personagens que Hellman irá dissecar durante o filme.
Em termos
de trama, Corrida Sem Fim, como todos os filmes de Hellman, é
mínimo. Como o relacionamento de seus protagonistas e como o carro
dirigido pelo Piloto, Hellman retira apenas o necessário do roteiro
escrito por Rudy Wurtlizer (também roteirista em Pat Garrett
& Billy the Kid, de Sam Peckinpah, e O Pequeno Buda, de
Bernardo Bertolucci). A grandiosidade se insere não por aquilo
que é filmado, mas como aquilo acaba sendo filmado, pois a câmera
de Hellman não julga, não sentencia e não define
nada, jamais: sua câmera captura, registra e observa a ação;
sua câmera contempla e serve àquilo que está sendo
filmado.
Para
entendermos o cinema de Hellman não devemos fazer como aqueles
que costumam comparar sua obra com a de Antonioni e outros cineastas europeus
importantes das décadas de 50/60 (embora possamos observar semelhanças
fortes entre o cinema de Hellman e o cinema de Antonioni), devemos partir
sim é do cinema clássico americano de Howard Hawks, John
Ford e Anthony Mann, o triunvirato da famosa "direção invisível".
Pode ser argumentado que o cinema de Hellman, ao contrário do cinema
dos três "senhores", é um cinema sem ação.
Ora, trata-se de um grosseiro equívoco, pois o que tanto Hellman
quanto Hawks, Ford e Mann filmam é sim a ação, mas
a ação inserida no espaço, com o espaço servindo
como catalisador. É desta maneira, pois, que avaliaremos Corrida
Sem Fim, O Tiro Certo, A Vingança de um Pistoleiro
e o restante da obra de Hellman.
É,
portanto, fundamental o papel do espaço em um filme como Corrida
Sem Fim. Seja ao capturar as inacabáveis rodovias percorridas
pelos personagens e seus carros, seja ao filmar uma colina que o Piloto
e o Mecânico irão atravessar, seja ao filmar um barranco
onde a Garota e o Piloto observam a imensidão do mundo, é
partindo do espaço que Hellman irá definir aquilo que realmente
importa no seu filme: a distância de um ponto de partida e a ausência
de um destino, algum lugar para onde ir. Pois se existe um destino, e
este sabemos que é Washington, ele acaba perdendo a importância
durante o percurso: a viagem é necessariamente de descoberta, de
introspecção, de vida e de compreensão daquilo que
nos cerca.
E é
na caracterização de Warren Oates, que interpreta G.T.O.,
que perceberemos exatamente o que importa na viagem que Hellman nos oferece.
Se Hellman usa o espaço como catalisador das ações
de seus personagens, Oates serve perfeitamente como catalisador das emoções
do filme. Se o Piloto, o Mecânico e a Garota personificam a necessidade
de seguir em frente, de prosseguir o caminho sem se preocupar com o que
está por vir, o G.T.O. de Warren Oates personifica a angústia
de não se ter um destino, de se procurar uma vida para se ter e
de sempre perdê-la, sempre deixá-la escapar exatamente por
ter de continuar na viagem. Impossível não admirar o trabalho
do veterano ator, intérprete fetiche de Peckinpah e de Hellman,
como o inventor de histórias que usa a cada cena uma caxemira de
cor diferente e mantém um mini-bar no porta-malas de seu carro.
Toda a humanidade do mundo é expressa por um sorriso, um olhar
ou uma frase de Oates.
Seria
injusto esquecer do cantor James Taylor, interpretando o Piloto, com sua
voz suave que contrasta com a opacidade de seu personagem; ou do grande
Dennis Wilson, integrante dos Beach Boys, como o Mecânico
que examina o Chevrolet '55 com a mesma calma que a câmera
de Hellman observa seus reparos na máquina; ou de Laurie Bird,
a Garota, com sua beleza selvagem que parece escapar de seu domínio.
Injusto também esquecer de citar a fotografia de Gregory Sandor,
com sua iluminação quase que imperceptível e seus
movimentos de câmera lentos e cuidadosos.
Há
ainda muitas coisas a serem lembradas. Há a primeira cena com a
Garota, ao som de Hit the Road, Jack, onde Hellman e Sandor usam
de maneira magnífica a profundidade de campo do sistema Techniscope;
há o encontro entre o Piloto, o Mecânico, a Garota e G.T.O.
num posto de gasolina, onde se dará a aposta que embalará
o restante do filme, que é uma verdadeira aula de decupagem, do
verismo "o diretor é alguém que não fica no seu caminho",
dito uma vez por Howard Hawks; há diversos pequenos momentos entre
Laurie Bird e James Taylor, ou Laurie Bird e Dennis Wilson, ou Laurie
Bird e Warren Oates, que são detentores de muito mais mundo que
qualquer coisa que diretores como Steven Spielberg e Guy Ritchie obtiveram
nos cursos de suas carreiras; e há a cena final, inesquecível
e inigualável, que realmente socorre o sentido da palavra "emblemático",
pois simboliza - como poucas - o perenal caminho que os protagonistas
de Corrida Sem Fim ainda irão trilhar.
"I
got no time for sidetracks". É o que em determinado momento
o personagem de Warren Oates, contraditoriamente, fala ao "caroneiro"
interpretado por Harry Dean Stanton (o Travis de Paris, Texas),
durante uma discussão. E, de certo modo, é a sensação
que temos ao descobrir este belíssimo filme do grande cineasta
que é Monte Hellman, pois no seu cinema o que importa é
a ação, o decurso; é o agora, jamais o futuro; é
o que nós, meros "caroneiros", presenciamos e apreendemos da vida
e do mundo que cerca seus personagens. E tudo aquilo que escapa da nossa
percepção parece não ter importância, pois
o que está na tela é mais valioso do que aquilo que escapa
dela (ao contrário, por exemplo, de um Michelangelo Antonioni ou
de um Brian De Palma, dois gigantes do cinema da reflexão). E se
de fato é grande um cinema que se propõe a capturar alguns
fragmentos de mundo sem jamais impor ao espectador verdades absolutas
acerca do mundo capturado, então Corrida Sem Fim é
gigante.
Bruno
Andrade
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