O
Voto É Secreto,
de Babak Payami
Raye Makhfi, Irã/Itália/Canadá/Suíça,
2001
Primeiro observamos
o lento cotidiano de dois guardas de fronteira. É uma ilha no Irã.
Eles trocam turnos, e quando não vigiam o movimento de barcos e
pessoas para conter o avanço do contrabando, dormem e pouco falam
entre si. Do nada, chega uma caixa, que cai do céu. Aí a
metáfora deve ser encarada em sua verdadeira acepção:
não só ela cai, jogada de um avião, como ela cai
agora do ponto de vista da psicologia do filme sem o menor
sentido, sem a menor lógica, intrusa num mundo que não a
conhece e preferencialmente, não a quer. É uma caixa que
contém urnas, votos e um mapa, além de todas as instruções
para fazer os habitantes dessa ilha participarem do escrutínio
que decidirá a nova organização da câmara dos
notáveis no Irã (um senado, uma câmara legislativa?).
Para conduzir a votação, chegará um agente, uma moça
imbuída com os sentimentos de que faz um trabalho cívico
importante para o melhoramento da sociedade do Irã. Para conduzi-la,
um dos guardas, que utilizará seu jipe e seu fuzil para fazê-la
chegar a todas as localidades de uma ilha desertificada (em termos geográficos
e de população) e com povoados mínimos.
O Voto É
Secreto é, então, um filme com uma idéia: filmar
o absurdo de uma corrida por votos numa ilha distante, longe de qualquer
conexão aparente com a realidade social e política do Irã
a cada instante supõe-se que todos os votantes ignoram qualquer
um dos candidatos que lhes são apresentados através do nome
e da fotografia , seja por jornais, televisão ou mesmo tradição.
Só que, na malha fina, ressalta um outro tema, muito mais profundo:
o da tentativa de intervenção do Estado em todos os estratos
da vida social de seus indivíduos, e a tentativa de legitimação
através da representatividade que consiste hoje em dia o verdadeiro
significado de uma votação. Não são uma menina
idealista e um guarda ignorante e bronco que fazem o tour por todos os
povoados da ilha; são uma urna e um fuzil, e os dois têm
nessa localidade a mesma função metafórica: lembrar
da presença do Estado, inscrever nos corpos das pessoas a sua inserção
na sociedade, torná-las, malgrado elas mesmas (e nisso constitui
a leveza do filme), cidadãs, sem sequer perguntar se em algum momento
elas queriam sê-lo.
O filme movimenta-se
através de seqüências quase anedóticas de visitas
aos povoados: não progride em termos do aumento do absurdo (no
sentido de que cada vez nos deparamos com um absurdo maior), mas pela
acumulação de situações que ratificam uma
tese. Se há evolução, ela está no olhar dos
dois personagens: a agente torna-se cada vez mais pessimista, ciente de
que seu esforço é completamente vão, enquanto o guarda
fica excitado, mas apenas emocionalmente, porque a votação
quebra sua rotina e o faz conhecer uma mulher por quem acaba nutrindo
sentimentos fortes (jamais atualizados). O Voto É Secreto funciona,
beckettianamente, como a soma de gestos inúteis e redundantes,
como a falência de um discurso geral a votação
é boa em si e todos os cidadãos devem votar quando
dirigido a uma situação que não pode suportar essa
lógica.
No decurso do filme,
no entanto, não é só a lógica de um processo
eleitoral que é tocada. O Voto É Secreto ainda faz
uma espécie de painel sociológico do atraso da sociedade
iraniana: somos o tempo todo confrontados à ignorância (às
vezes com um olhar ocidental demais, diga-se), ao coronelismo (um caminhão
vem trazer pessoas para votar e o próprio motorista se acha porta
voz de todas elas), às contradições da sociedade
iraniana (16 anos para votar, 12 anos para poder casar), ao analfabetismo,
à intolerância dos homens para com o sexo feminino... Mas
também um outro tipo de presença nula do Estado aparece
no filme: uma usina para captar luz solar e transformar em energia aparece
semi-destruída, vivendo nela apenas um vigia, como um dos projetos
que começaram e não terminaram.
Filmado com uma forma
forte demais, lembrando os planos-seqüências de um Amos Gitai
ou de Tsai Ming-liang (que em comum ainda tem a referência do burlesco
e do absurdo), O Voto É Secreto lembra em sua forma muito
menos qualquer filme do Irã do que um filme europeu, talvez francês:
o mesmo gosto por filmar os personagens em seus ambientes, o mesmo uso
contrastado do som, alterando seqüências de puro barulho com
outras de uma leve e melodiosa música (o som do filme é
de fato feito por um ocidental, e o próprio diretor morou por muito
tempo no Canadá). Há um fio ocidental que perpassa o filme,
tornando-o às vezes um pouco falho, e também ocasiões
onde a comicidade é gratuita e pouco interessante. No entanto,
são apenas momentos frágeis de um filme muito forte no que
apresenta. Surgido a partir de uma idéia de Mohsen Makhmalbaf,
o filme supera em muito o argumento inicial e a própria estética
do cineasta/produtor/coroné da indústria "artística"
iraniana, por sua sutileza (nada comum ao misantropo Makhmalbaf) e pelo
trato de carinho que dedica aos personagens para realizar mais que a análise
de uma situação absurda. Mais que um filme a partir de uma
idéia, O Voto É Secreto é um filme que vive
por si só, pro suas imagens, independente do didatismo em que às
vezes recai. Mas o filme é mais que isso.
Ruy Gardnier
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