Va Savoir,
de Jacques Rivette


Va Savoir, França, 2001

O cinema de Jacques Rivette gravita em torno de alguns poucos pontos notáveis: a liberdade e a cumplicidade no trabalho com os atores, a lei do plano-seqüência, o amor, a relação entre arte e ética (ou ao menos entre arte e realidade, o que dá no mesmo), um roteiro que se movimenta pelas intrigas e pelos malentendidos... Va Savoir não se situa nem um pouco ao longe desse naipe de preocupações, não o estende e não o modifica. Poderíamos com isso nos preocuparmos e começar a reclamar, apontando uma falta de renovação da obra, em certo aspecto um cinema que funciona sempre em torno do mesmo dispositivo. Poderíamos, sim, mas há tanta graça em seu filme que ainda o deixa cheio de interesse para aqueles que admiram seu trabalho.

Va Savoir apresenta um Jacques Rivette mais leve, mais límpido em sua forma. Faz tempo que Rivette já é um cineasta que chegou à maturidade de sua arte – ou seja, transformou-se em mestre –, mas a calmaria aqui funciona de outra forma. Nada como a urgente e intensa cena de sexo de O Amor Louco ou os fortes sentimentos que impelem Michel Piccoli a pintar e depois esconder sua obra-prima em A Bela Intrigante. Nesse sentido, Va Savoir está perto de um gênero que pouco se conseguiria acreditar que ele entraria: a comédia romântica. Clássico, no entanto, ele se apoiará na suavidade e no sentimento de mundo de um longínquo precursor da comédia romântica americana: Shakespeare.

Mas há um dramaturgo mais moderno que é encenado pela trupe de Ugo, diretor e ator italiano que encena uma das mais famosas peças de Luigi Pirandello, Como me quiseres. Nela, uma mulher, nomeada como "a desconhecida", larga uma vida ressecada pela esperança de um amor que ela virá, mesmo que desajeitadamente, reatualizar. Logo, uma peça sobre a personalidade, a intercambialidade de egos (a "desconhecida" tenta honestamente mentir sobre sua identidade para reavivar um amor que entretanto não é o dela), mas antes de tudo da troca das identidades, das reações imediatas, de como a identidade de fato varia com a situação. Proposta mais adequada para o trabalho de burilação de roteiro próprio a Rivette, Pascal Bonitzer e Christine Laurent impossível: eles tomam o parti-pris da peça e o distendem para seus próprios personagens.

Em Como me quiseres, é a aparição de um estranho que deflagra a mudança de vida. Em Va Savoir, é uma viagem da trupe à Itália. Ugo (Sergio Castellito) e Camille Renard (uma Jeanne Balibar em total controle de todos os moviemntos) são um casal de atores. Ela vem de um relacionamento difícil que inclusive a fez partir para a Itália, uma espécie de amor louco que poderia conduzi-la à loucura ou ao término de sua carreira. Ugo, por sua vez, tem também motivos secretos para estar em Paris. Enquanto Camille procura seu ex-namorado Pierre, ele dirige-se a quantas bibliotecas for possível para encontrar uma possível peçca jamais publicada do famoso dramaturgo Goldoni, Um destino veneziano. Em sua procura, encontrará a exuberante Dominique (interpretada por Hélène de Fougerolles), que tem um estranho irmão, Arthur, e uma mãe acolhedora.

Va Savoir gira em torno de seis personagens e três casais (não necessariamente sexuais): Ugo-Camille, Pierre-Sonia, Dominique-Arthur. Logo, essa relação passará a ser Ugo-Dominique, Camille-Pierre, Sonia-Arthur. Como, ao final do filme, o "destino" da peça de Goldoni se transformará em "festino". A recolocação em ordem dos elementos passa a ser a lógica interna de Va Savoir (como em geral na obra de Rivette). Mas há um gosto para além disso. Pode ser que às vezes o filme se perca em tantas procuras desastradas e nas complexificações das relações entre os personagens (sobretudo quando entra em jogo o personagem de Arthur, que quase cai de pára-quedas na trama), mas isso tudo acaba valendo o gosto da seqüência final, clássica até não mais poder, onde o teatro passa a abrigar todas as intrigas e personagens do filme. Um Rivette atenuado, sem dúvida, onde já não há mais aquelas radicais flutuações de humor, de movimento-repouso, de mise-en-scène, de clímas, enfim, mas um filme-lagoa, leve, adocicado, que toca o espectador pela doçura dos movimentos. Mais Vivaldi do que Stravinski, mais Shakespeare comediógrafo do que Pirandello, Va Savoir é um filme de um Rivette cômodo, mas jamais acomodado.

Ruy Gardnier