História Real,
de David Lynch



The straight story, EUA, 1999

Finalmente exibido por aqui – o lançamento de fato tem sido constantemente adiado há mais de um ano – este Uma História Real foi objeto de críticas que, se por um lado elogiaram o filme, por outro o consideraram destacado da obra lynchiana, talvez por uma espécie de abandono daquela que considerada sua principal característica, a bizarria. Nada de mais despropositado poderia ser dito, nada de mais superficial: há de fato toda uma gama de personagens e temas estranhos nos filmes desse diretor, mas é preciso salientar que eles não existem em contraposição à esfera de felicidade e brilho de uma cidade como a de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), por exemplo, e sim complementando-a. Se Frank Booth, a personagem enlouquecida de Dennis Hopper é estranha, é porque com ele coexiste o bombeiro que acena para os cidadãos do bairro de subúrbio em um esplendoroso dia de sol, como nos mostram as primeiras cenas de Veludo... . Isto é: o estranho só pode existir porque existe seu outro lado, e o que os filmes de Lynch nos mostram é que esse outro lado não é uma oposição, mas o que complementa e dá a possibilidade de existência.

Falando sobre este filme, o diretor afirmou que "...o mundo de hoje é diferente daquele em que fiz Coração Selvagem [Wild at Heart, 1990], há dez anos. Naquele tempo, estavam acontecendo coisas que pude expressar naquele filme, era coerente com a época. E agora, a violência se transformou em uma coisa tão absurda que você nem mais a teme. Vivemos numa época de estado de dormência". E dessa época em que a violência não é tão chocante é perfeitamente coerente que surja, para Lynch, um filme como Uma História Real. Pois, se é verdade que ele agora transita por uma dimensão outra daquela pela qual se acostumou a caminhar – mas que, reafirmamos, complementa aquela – o que move seu filme, aquilo de que ele trata continua o mesmo: a paixão. Alvin Straight (Richard Farnsworth), a personagem principal, é um homem de 73 anos que recebe a notícia de que o irmão com quem brigara há mais de 10 anos acabara de ter um derrame; Alvin, que vive só com uma filha cuja saúde mental não é lá essas coisas, não apenas não tem licença para dirigir como precisa de duas bengalas para se locomover, mas ainda assim decide que precisa ir ver seu irmão. E precisa fazê-lo ele mesmo, sem a ajuda de ninguém. Para tanto, adapta seu cortador de grama e parte para a estrada; é a jornada de Alvin, que cruza 350 milhas em seu veículo, que anda 20 km/h, aquilo que acompanhamos no filme. E, por trás do falso pessimismo que perpassa Uma História... – em determinado momento, um rapaz pergunta a Alvin qual a pior coisa em ser velho, ao que ele responde: lembrar de quando se era jovem – o que temos ali é antes uma afirmação da vida.

A jornada de Alvin é mostrada dia após dia, seu percurso pela estrada sendo embalado pela bela música de Angelo Badalamenti, as cenas de seu cortador na estrada perpassadas por aquelas da colheita das plantações ao redor; Alvin sabe que a vida se vive a cada dia, e, mesmo que a velhice lhe traga doenças e o impossibilite para muitas coisas, ele sabe que esse período que se encontra entre o dia em que nascemos e aquele em que morremos deve ser vivido em sua plenitude. E ele segue, dia após dia, cansado e persistente. Por seu caminho passam diversas figuras, desde uma moçoila grávida que fugiu da família até um homem, que, como ele, é veterano da Segunda Guerra; para todos o que Alvin deixa é vida, vida que, mesmo estiando, ainda vive. A atuação de Richard Farnsworth é única e em seu rosto se formam todo tipo de expressão ao longo do filme, todas elas fundadas, porém, sobre aqueles olhos que, como ele próprio diz, já viu tudo o que a vida tem a mostrar.

As cenas mais bonitas, porém, são aquelas em que Alvin está sozinho; ou ainda, aquelas em que estamos nós, sozinhos com Alvin, acompanhando o nascer e o pôr do sol, sempre pela mesma linha amarela que divide a estrada em duas. É nessas horas que constatamos que a cada noite, invariavelmente, se segue um dia, uma manhã; e é nessa sucessão de noites e manhãs que o velho homem, conhecedor do tempo, constrói seu caminho e de fato chega até a casa do irmão. Lá, uma cena quase muda, mas que concentra tudo, tudo o que o filme construiu até ali: os dois irmãos juntos, se fitam enquanto a câmera sobe ainda uma vez para o céu estrelado. Porque depois daquela noite ainda há de amanhecer um outro dia.

Juliana Fausto