Réquiem
para um Sonho,
de Darren Aronofsky
Requiem for a Dream,
EUA, 2000
Há alguns anos
foi publicado no Brasil um livro reunindo os mais importantes artigos
publicados pelo periódico The Nation ao longo de sua história,
e nesse livro havia um artigo do Eisenstein bastante interessante, especialmente
interessante porque lá o próprio russo explicava sucintamente
aos americanos a revolução na linguagem cinematográfica
que ele e mais alguns estavam fazendo em seu país, eles que eram
conhecidos pelos americanos por uma outra revolução. Num
trecho, o Eisenstein simplificava com um exemplo uma parte central das
suas transformações, dizendo que uma seqüência
com um sujeito caindo ribanceira abaixo num trenó seria mostrada
num filme russo da época de uma forma totalmente diversa da que
seria por um filme americano. Este mostraria, talvez com algum humor,
um plano do sujeito a partir de onde ele caiu e, possivelmente, outro
próximo ao destino do trenó, enquanto a seqüência
soviética seria muito diferente, toda retalhada em vários
planos, pois na URSS eles haviam percebido o ritmo que dava à narrativa
a inserção de toda sorte de imagens relacionadas, como o
do rosto de susto do homem, o trenó passando, os gravetos se quebrando
e afins.
Ok, isso é
apenas uma parte inicial da conversa toda, mas, na verdade, o que eu lembrava,
ao falar desse artigo pequeno e ao mesmo tempo histórico do Eisenstein,
era de como a assimilação dessas idéias se deu nos
EUA, possivelmente mais do que em qualquer outro lugar, e como essa cultura
da decupagem e montagem é fundamental para toda a produção
americana, num jogo em que um alimenta o outro, a produção
contínua e comercialmente internacional provocando a narrativa
a se tornar cada vez mais assimilável, e a narrativa cada vez mais
assimilável (e por extensão manipulável) ajudando
a expandir cada vez mais o mercado e por conseqüência a quantidade
de produção. Estamos, portanto, diante de uma indústria
que se condena a um ciclo constante de aprimoramento formal. Assim, lembro
(mais ou menos) do que dizia de uma maneira mais franca um amigo meu,
o André, que não por acaso trabalha com montagem e edição,
ele me disse uma vez algo como ‘os gringos podem filmar a porcaria que
for, mas qualquer programa de tevê e qualquer filmeco vagabundo
são decupados seguindo certinho uma fórmula clássica’.
É verdade, há algumas regrinhas que aparecem em manuais
para os que querem viver na indústria, o que muito choca a alguns,
mas nem detratores nem defensores discutem que na produção
majoritária audiovisual americana segue-se um manual, burramente
ou não. Bem, é uma indústria.
Réquiem
para um sonho? Réquiem para um sonho... Olha, é
um filme incrivelmente bem narrado, bem decupado, cheio de cortes e bons
enquadramentos, uma narrativa simultânea de quatro personagens,
planos curtos dando ritmo com uma musiquinha no fundo, e coisa e tal.
Bacana, bem feito pacas, vou te contar. Mas, bom, e aí? Aí
que é a triste história do lado negro do sonho americano,
pessoas que se entregam à triste realidade do uso de drogas legais
ou ilegais diante da sua falta de força de vontade para vencer
na vida e terminam o filme em grande sofrimento por isso.
Pessoalmente, não
tenho problema algum com o tipo de filme narrativo clássico feito
nos EUA, um filme que se propõe a ser uma comédia romântica
seguindo padrões do arco da velha não me parece algo, em
si, atacável, afinal de contas cada um tem suas ambições,
e não me parece correto atacar uma proposta por ser repetitiva
e sem ambição se isso for assumido com honestidade. E mesmo
que seja natural do comércio dar algum verniz ao produto, temos
que admitir que aí, não raro, o jogo é só
com quem quer ser enganado.
Mas aí é
que a gente chega ao problema que eu estou dando voltas para encontrar.
Há nas telas um certo tipo de filme com um verniz especial, verniz
bonito, bem trabalhado e pintado e às vezes é até
um verniz original, mas é só um verniz. O fato de Réquiem
para um sonho ter uma história contada de um jeito eficiente
e até original (mas não muito) não esconde a imensa
caretice que o filme é. Ou não? Não consigo não
pensar na sua lição moral final, em que Sara, a mãe,
em seus delírios finais imagina pela enésima vez receber
seu sonhado prêmio, e só nesse instante final do filme é
que em seu delírio aparece seu filho, e, ao contrário de
como ele se apresenta no filme, no sonho da mãe ele está
com um cabelo engomadinho. Tendo visto a triste perda que ele sofreu instantes
antes, o espectador vê sua mãe delirando que o está
abraçando, e confessa que está orgulhosa "da força
de vontade que ele sempre exibiu".
Isso poderia soar
como uma ironia com os ideais da mãe do rapaz, assim como certamente
o é a mudança de cabelo, mas não, não é
por aí não. Este é o momento em que parece que o
discurso do filme parece reconhecer que o discurso careta, mesmo que possa
parecer ridículo (como o é o cabelo do rapaz no sonho),
é na verdade a alternativa "saudável", o pólo
"do bem" de uma sociedade. O que me pareceu que o filme procura
deixar claro nesse final é que faltou força de vontade aos
personagens para não cair no ciclo que de alguma forma os destruiu,
quer dizer, o narrador tem péssima opinião sobre seus personagens,
embora nutra por eles uma pena condescendente. Na verdade, houve um momento
em que o filme parecia se identificar plenamente com o olhar dos seus
personagens, é o olhar das pessoas que assistem desconsoladas para
Sara quando ela entra em crise na porta da emissora de TV, um olhar de
pena, de solidariedade com um mundo "feio" e "auto-destrutivo".
No resto dos momentos, os personagens agem como estúpidos, absolutamente
incapazes de sequer perceber o buraco em que estão se metendo,
agindo de forma a criar seus próprios problemas para que no final
nós saibamos que tudo que eles fizeram foi errado. A montagem original
pode apresentar um clima de hiper-realismo, mas a história força
a barra o tempo todo para seguir o caminho pretendido por uma visão
de mundo claramente determinada, e são justamente essas implausibilidades
que fazem do filme uma fábula social, muito mais que um filme-denúncia.
Uma fábula que, querendo "ver o lado negro da América",
acaba apenas por denunciar seu moralismo conservador.
Decerto muita empolgação
surgirá na recepção a Réquiem para um sonho,
e nem acho que temos motivos para nos impressionar com isso. Afinal de
contas, o filme é incrivelmente bem-narrado visualmente, super
moderno na sua digestão dos manuais de corte e costura, dando-lhe
um verniz todo especial, bonito mesmo, e igualmente sua dramaturgia é
bastante funcional – porque nós poderíamos argumentar que
a narrativa simultânea é usada apenas porque isso é
moda desde Pulp Fiction e Short Cuts e que, no fundo, o filme segue
fielmente as regras dos dramalhões moralistas, mas isso não
é muito mais que opinião e não nega o fato de que
a narrativa do filme é plenamente assimilável por seu público.
E às vezes podemos achar que o problema é que o filme se
vende como "arte", e que as pessoas estão comprando gato
por lebre, mas a verdade é que tem gente que gosta de comprar felinos
mesmo.
Sobre Réquiem
para um sonho, mais uma vez? Há um narrador que aprendeu todas
as artimanhas para contar bem sua história. Pena que sua história
apresente uma visão de mundo tão ingênua e moralista.
(Bem, mas é
preciso reconhecer que o filme mostra interesse em olhar para o mundo,
e isso é sempre um bom começo, não mais que isso.)
Daniel Caetano
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