Porto
da Minha Infância,
de Manoel de Oliveira
Porto da Minha Infância,
Portugal, 2001
Imagine um filme de
um diretor de 93 anos chamado Porto da Minha Infância. O
que esperar disso senão um olhar melancólico para o passado,
uma meditação sobre a morte, sobre aquilo que já
não mais existe e carrega consigo a morte de lembranças
de uma vida inteira? Pois bem, pense tudo de novo. Trata-se de um filme
de Manoel de Oliveira. Pois só ele conseguiria fazer um filme sobre
seus anos de meninice sem fazê-los parecer nostálgicos ou
anacrônicos, transformá-los naqueles "tempos bons que
não voltam mais", mitificá-los, como é comum
nas pessoas de mais idade sem a mesma vitalidade para encarar as novidades
que lhe aparecem.
Abre o filme um maestro.
Sob fundo preto, de costas, ele rege uma orquestra invisível. Mas
a música toca: poderosa, forte, evocando os modernos e contemporâneos,
o filme passa alguns minutos nos fazendo ver esse homem, de quem só
vemos o dorso e os braços, conduzindo um fluxo. A imagem é
inequívoca: o fluxo é o da história, essa com o H
entre o minúsculo e o maiúsculo, pois são uma e a
mesma. O regente é o diretor, que se reconhece como tendo o tempo
em suas mãos, tendo o avantajado olhar de quase um século
para observar tudo com uma serenidade e uma clareza de sentimentos não
do historiador de gabinete, mas daquele que viveu a história em
sua pele, e se dá conta disso. A História, as lacunas existentes
entre o tempo passado e o tempo presente, essas foram sempre as linhas
mestras do trabalho de Manoel de Oliveira. As próprias artes, todas
sempre presentes em Oliveira em Porto de Minha Infância
há poesia, escultura, teatro, reconstituição de interiores,
em outros há pintura, cinema... , não valem como efeito
de maravilhamento, mas antes como testemunhos, como documentos vivos,
encarnados, sobre uma época.
Depois do maestro,
uma fotografia. Fora de foco, vemos as ruínas de um velho casarão,
que uma voz off (a do próprio Oliveira) vem dizer que foi o lugar
onde viveu e escreveu suas primeiras coisas. Começa a parte propriamente
historiográfica, que perpassa a autobiografia mas jamais é
capaz de se prender nela ao contrário de Sokurov, artista
da sonata e da elegia, Oliveira é sempre polifônico, sinfônico:
ao falar de seu passado, ele carrega vários outros
passados consigo. O que dá a Manoel de Oliveira sua posição
desde já de clássico não é a frieza de suas
encenações nem a aparente solenidade de tudo que coloca
em cena, mas o trato com o tempo (o tempo do mundo e, por conseguinte,
o do cinema), a maneira como ele consegue caminhar com o tempo,
fazendo dele seu parceiro e cúmplice na arte cinematográfica.
Em Porto da Minha
Infância, muitas imagens da cidade se conjugam. Não há
diferença de estatuto entre nenhuma delas: as ruas antigas da cidade
do Porto, o teatro em que se encena a peça Miss Diabo, importante
em sua vida de adolescente, e as ruas da cidade de hoje, repletas de carros,
não há diferença de textura de imagem, de tratamento
seja estético (por imagens e sons) seja moral (pelo conteúdo
do discurso em off). Ou seja, ontem e hoje se intercomunicam, brincam
entre si, se parodiam e se indagam. A própria relação
documentário/ficção, sempre tão frágil,
parece mais inexistente ainda em Oliveira: seja a reconstituição
dos cabarés e teatros, seja a cidade de hoje, em suas pontes e
ruas, todas são vistas sob o duplo aspecto de ficção
(pois trata-se de uma representação, não da verdade)
e do documento (pois toda imagem, antes de estética, é registro).
Tudo que aparece à
imagem traz portanto essa dupla marca, e nela os "personagens"
do filme, as obras: uma bela canção cantada por Agustina
Bessa-Luís, parceira eterna de Oliveira, uma escultura de um artista
amigo do diretor que foi acusada de plágio do Pensador de
Rodin, um lindo poema intitulado "Europa" de outro de seus amigos,
os dancings, a "vamp" interpretada por Leonor Silveira, todos
achando seu lugar em pé de igualdade com as fotografias, com os
filmes antigos de Oliveira (vemos imagens de Aniki-Bobó),
e com as tomadas da Porto de hoje. Uma imagem, no entanto, resiste mais
do que as outras: na bruma, num cais, um homem, que de longe só
podemos distinguir a silhueta e uma brasa que se acende à altura
de seu rosto (um charuto? um cigarro?). Na verdade, é um farol.
Tanto melhor: turva, serena, essa imagem se confunde com a própria
figura de Oliveira observando 90 anos de vivência da cidade do Porto.
Nostálgicos ficamos nós, ciosos tanto de ver o filme novamente
quanto de viver todo esse tempo que se passou atrás de nós.
Ruy Gardnier
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