O
Pornógrafo,
de Bertrand Bonello
Le pornographe, França/Canadá,
2001
Exibido na Semana
da Crítica do último Festival de Cannes, o segundo longa-metragem
de Bertrand Bonello (de quem o primeiro, Quelque Chose d'Organique,
permanece inédito no Brasil) recebeu lá o prêmio da
crítica internacional (representada pelo júri da Fipresci).
Julgamento acertado dos críticos, que souberam premiar um talento
que se destaca na conjuntura do jovem cinema francês com um filme
verdadeiramente questionador e com grande poder de reflexão, algo
na linha da melhor tradição do cinema moderno francês.
Para o diretor de
O Pornógrafo, porém, aderir à tradição
não é um gesto gratuito ou até, na melhor das hipóteses,
ativo em sua pretensa positividade. É uma aproximação
difícil, consciente e crítica, em que se problematiza a
natureza e os valores (morais, instrumentais, formais) contidos na herança
da tradição, assim como se questiona a própria natureza
da aproximação, uma complicada relação estabelecida
entre o recipiente e o representante último, originário
e fundador deste legado.
Que esta aproximação
esteja tematizada no filme como um conflito de gerações
-- especificamente entre pai e filho --, uma solução até
certo ponto convencional em sua tentativa de resolver o impasse da representação
inserindo-a numa matriz psicológica, não tira nenhum mérito
de Bonello. Pelo contrário, propõe uma leitura deveras intrigante
ao mesmo tempo que revela um comentário histórico agudo.
E isto se deve, em boa parte, às escolhas dos atores que compõem
o elenco.
Bonello, em depoimento
ao Le Monde há alguns meses atrás, dizia pensar em Maurice
Pialat ou Philippe Garrel para o papel de Jacques Laurent, a personagem-título,
antes de encontrar em Jean-Pierre Léaud o intérprete ideal.
Nada mais acertado. Pialat ou Garrel poderiam até dar conta do
recado, mas eles não comportam a dimensão mítica,
única, de resgate do imaginário da Nouvelle Vague e de toda
a trajetória do moderno cinema francês (e porque não,
da cultura francesa contemporânea). A simples presença de
Léaud, cujo rosto envelhecido traz as marcas físicas da
efervescência cultural dos anos 60 e 70; cuja expressão melancólica
revela a nostalgia das atividades de outrora; cujas reações
musculares involuntárias, tiques nervosos, são um índice
incontestável de quem lançou o corpo e a mente na aventura
de toda uma geração; sua simples presença eleva O
Pornógrafo a uma nova categoria discursiva. Por sua vez, Joseph,
a personagem do filho, é interpretada por Jerémie Régnier,
jovem ator revelado em La Promesse, dos irmãos Dardenne.
Do Antoine Doinel
órfão rebelde de Os Incompreendidos, passando pelo
jovem revolucionário de A Chinesa e pelo Alexandre de La
Maman et la Putain, ao pai rejeitado em busca da compreensão
filial em O Pornógrafo, mais de quatro décadas se
passaram. Ao cabo desta trajetória encontramos, segundo Bonello,
um homem atormentado por um passado dedicado a alimentar utopias frágeis,
já desaparecidas, em busca de um recomeço. Para isto, seria
necessário reencontrar suas raízes burguesas e reestabelecer
vínculos há muito perdidos, talvez inalcançáveis:
realizar o projeto da obra máxima inédita, compreender e
aceitar o suicídio da esposa, construir uma casa, reencontrar o
filho, trabalhar. Jacques é esta personagem introspectiva e melancólica
que internaliza numa crise pessoal permanente sua incapacidade de abraçar
os valores tradicionais burgueses e seu desapego a tradições
de qualquer espécie, falhando miseravelmente no papel de pai, de
profissional, de chefe de família, de pornógrafo. Neste
sentido, lembra bastante uma personagem emblemática de um filme
dos irmãos Taviani, Alonsanfan (Marcello Mastroianni).
Joseph, o filho que
abandonou o pai, percorre um trajeto semelhante ao de Jacques em sua paródica
mobilização juvenil em prol do silêncio como forma
de contestação. O seu desapego, por sua vez, aos valores
burgueses e sua recusa ao pai, representação engessada de
um conflito mal resolvido, são as duas faces de uma mesma moeda:
o desconforto com a vida contemporânea, cujos signos já não
são tão evidentes quanto os da modernidade opressora presentes
em Antonioni. A melancolia urbana, o corpo cansado e a alienação
daquele são substituídos por um retorno ao romantismo bucólico
do campo, pela descoberta do amor (atenção à bela
sequência que homenageia Monteiro e sua Comédia de Deus)
e pela expressão do corpo histérico.
É numa personagem
estrangeira a todos estes conflitos, no entanto, que Bonello deposita
alguma positividade, uma última reserva de otimismo: é o
semblante plácido, distante e misterioso de Dominique Blanc que
nos anuncia o nascimento de uma nova criança e uma possível
redenção para todos.
Fernando Veríssimo
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