Navarro e outros super-heróis


(Exibição histórica de O Rei do Cagaço; Lin e Katazan (86); Porta de Fogo (85); e Superoutro (89))

Procure o nome de Edgard Navarro nas enciclopédias, livros e revistas especializadas em cinema de todo Brasil. Ou mesmo de qualquer um de seus parceiros do grupo Lumbra: Fernando Bélens? Pola Ribeiro? Araripe Jr.? E o ator Bertrand Duarte? Achou? Não? Como não?!

O cineasta baiano Edgard Navarro esteve no Rio de Janeiro numa única e contraditória sessão promovida pelo Festival do Rio. Por aqui, até agora, algumas citações em antigas Cinemins, na finada Tabu, editada pelo Estação e poucas exibições. Superoutro (89), seu filme mais conhecido, foi exibido recentemente no CCBB. Os anteriores Porta de Fogo (85) (melhor filme e roteiro no Festival de Brasília em 85) e Lin e Katazan (86) (melhor filme, montagem e ator no Festival de Brasília em 86) praticamente estrearam no último dia 5 de outubro. Sem falar n’O rei do cagaço, integrante de uma trilogia que se completa com Alice no país das mil novilhas e Exposed, todos realizados no fim da década de 70, a reboque da relativa popularização do S-8. Os quatro títulos supracitados compuseram o Programa Edgard Navarro (sexta, 00:00???), com apoio da Labo Cine, que restaurou os negativos desses e de alguns outros filmes do mesmo autor...

Como já propus, procure seu nome na enciclopédia do Fernão Ramos, no excelente livro do Jairo Ferreira (Cinema de Invenção) ou em qualquer publicação dedicada ao cinema "marginal", e encontrará duas ou três ocorrências tímidas, que absolutamente não dão conta da potência criativa do diretor. Podemos dizer que, por exemplo, "o problema é que as produções dirigidas por Navarro não são, digamos, palatáveis". De certo, se confundirmos palatável com "narrativo", com ‘linear", com "moderado", etc. Se ainda considerarmos o problema sob o prisma da qualidade da produção, descobriremos que Navarro e sua produtora, Lumbra Cinematográfica, formada em 1979, não primam pela bela reconstituição, pelos efeitos convincentes, pelo realismo exacerbado (tomado comumente como o máximo em "cinematografia"), senão que celebram a escolha dos planos, das palavras, da interpretação, da sonorização, da música, da montagem... Entremos, pois, no conteúdo de dois desses filmes atípicos, filmes-gêmeos, que espantam pelo despojamento da produção, pelo cuidado dos planos e das intenções, pela diversidade estilística e pelo ideário riquíssimo de piadas e referências: O Rei do Cagaço e Superoutro.

O Rei do Cagaço, espécie de ensaio para o Superoutro, é um filme experimental de grande interesse, porque expande a noção comum das limitações do S-8, a partir de uma dublagem muito bem feita e de muita criatividade nos planos e nos acontecimentos. Ambos tratam de... tudo, na medida em que perspectivas subjetivas (culturais, conjeturais) se imbricam. Vemos escrito direto no negativo a palavra CU, que logo se completa: ...LTURA; corta para um ânus em primeiro plano, digamos, "em ação", enquanto a voz no fundo propõe repetidamente: "vamos tentar? vamos tentar?" As interpretações podem ser múltiplas: um jogo de palavras contra o enrijecimento dos conceitos (e dos preconceitos), contra a cristalização das doutrinas, contra a caretice (como afirmou o próprio Navarro). A pergunta "vamos tentar?", seu caráter, perdão, psicológico-social, expõe de forma contundente a questão do cinema brasileiro, não como uma lamentação, senão como uma resposta ao nível cultural: "vamos tentar" realizar um filme, no que concerne à utopia material, ligada às condições de produção; mas também vamos tentar realizar poesia, no sentido mais abrangente da palavra, isto é, poesia que se relaciona com o movimento da vida.

O média-metragem Superoutro é um desenvolvimento do espírito e das idéias de O Rei do Cagaço. A regra é a mistura total. Na música: Caetano, pontos de macumba, Banda Mel, Villa-Lobos, Nino Rota, Fausto Fawcett. Nas imagens: Superman, o filme, Amarcord, A Idade da Terra. Nos conceitos: miséria, desenvolvimento, subdesenvolvimento, crítica da religião, pornografia, psicanálise, sociedade. Todo esse turbilhão cultural funciona, na máquina forjada por Navarro, como afirmação da loucura do superoutro, conferindo-lhe ares divinatórios, proféticos. Muitas vezes somos constrangidos a dar razão ao superoutro, a reconhecer em seus despautérios uma crítica pertinente ao estado geral de intolerância e pobreza que reina hoje ("acorda humanidade!", ele grita). O superoutro é o anti-herói brasileiro, um personagem que se assemelha ao pícaro espanhol, um iconoclasta, cujo parâmetro mais imediato é o Ali Khan de O Profeta da Fome (de Maurice Capovilla, em exibição no Canal Brasil) ou a turba anti-intelectual de Orgia ou O Homem que deu Cria (de João Silvério Trevisan, em cartaz na memória dos sobreviventes...).

Bertrand Duarte (genial!) é um mendigo de rua cuja missão é voar. A metáfora vem em favor das dificuldades nacionais, mas Navarro não encerra o espaço dramático sob a dimensão política. Ele nos dá também a dimensão individual do personagem, um sujeito à margem que deseja se integrar, não se entregar. Ele quer integração mas, antes, exige mudanças. Num dado momento, o superoutro acha 500 cruzados e troca por uma cesta de tangerinas. O feirante diz "pô, tu é otário mesmo, trocar 500 cruzados por uma cesta de mexericas...", no que o superoutro responde: "para quê que eu vou querer saber de tudo. O dia que eu souber de tudo eu não vou querer saber mais de nada." Seu nível de exigência é invisível aos olhos do povo e o superoutro prossegue em sua saga, sedento por sensações e questionando tudo o que vê pela frente.

A loucura do superoutro funciona como antítese da normalidade, do bom comportamento, mas acaba revelando o lado sujo, hipócrita e mendigo dessa suposta normalidade. Sua lucidez o permite descobrir o mundo através de um filtro de experiências radicais (experiências geralmente ligadas à falta de alguma coisa que o superoutro compensa com sua sabedoria). Ele chega ao ateísmo por vias muito pouco ortodoxas, devorando um ebó enquanto repete a frase de A Idade da Terra, "meu pai me abandonou, o pássaro da eternidade não existe". Descobre o sexo num lixão, através de uma revista de sacanagem que muda sua vida. Sobe na árvore e, sem cerimônia, grita como o tio louco de Amarcord: "quero uma mulher! quero uma mulher!" Toda experiência é um sintoma e uma redenção: nosso herói não faz concessão... a menos que esta lhe seja útil.

Superoutro e O Rei do Cagaço são dois filmes radicais, belos e absolutamente indispensáveis. É curioso observar que, vez em quando, aparece um jornalista anunciando que determinado filme é "um sopro de inventividade no cinema mundial" (geralmente quando falam dos insossos e entediantes Lars von Trier, Hal Hartley ou de pseudo novidades como Amnésia ou Moulin Rouge). Talvez por falta de oportunidade, talvez por displicência ou alienação, o sopro de genialidade do Superoutro não chegou a refrescar a cabeça desses jornalistas... e já se passaram 12 anos! Com as novas cópias e a partir da iniciativa oportuna dos organizadores do Festival do Rio esse panorama pode mudar. Navarro e sua trupe merecem todas as homenagens e nós, admiradores, merecemos novas exibições.

Bernardo Oliveira
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