Cidade
dos Sonhos,
de David Lynch
Mulholland drive, EUA,
2001
Ao assistir a Cidade
dos Sonhos, tem-se a impressão de que tudo ali já foi
visto antes, no cinema do próprio David Lynch; referências
a Twin Peaks, Veludo Azul, Coração Selvagem
e Estrada Perdida aparecem a todo momento e com uma tal profusão
que, à primeira vista, pode-se pensar que o cineasta não
fez senão repetir-se, reciclar seus próprios temas sem sair
do lugar. Mas uma segunda olhada pode nos mostrar que Lynch sabia bem
o que estava a fazer e que, ainda que seu ponto de partida seja o diálogo
com a sua própria obra, que esse diálogo não é
nunca estático.
Cidade dos Sonhos
começa com um acidente de carro que salva uma mulher (Laura
Elena Harring) de ser assassinada; com amnésia total, ela vaga
por entre casas até resolver se alojar na residência de uma
senhora que parte naquele momento para viajar. Acontece que a tal senhora
havia emprestado seu apartamento para uma sobrinha vinda do interior para
tentar a sorte como atriz ali, em Hollywood. Essa sobrinha, Betty (Naomi
Watts), exemplo de boa moça, encontra a acidentada e, ao saber
de sua história – isto é, daquilo que a outra se recorda,
de que esteve envolvida em uma batida de carros – resolve ajudá-la
a descobrir a sua verdadeira identidade. Uma cena antes, aparentemente
desconectada do resto da ação, dá já o tom
do filme: dois homens conversam em uma coffee shop; o primeiro
narra ao segundo um sonho horrível que teve. Ali, naquela mesma
lanchonete, ele via o amigo nervosíssimo a fitar o horizonte e
acabava por se apavorar ele mesmo, ao descobrir a razão do sofrimento
do outro: um homem horrível atrás de uma parede. Como que
para se purgar de tal pesadelo, ele pede ao amigo que o acompanhe até
essa parede, que fica do lado de fora da coffee shop; o amigo vai.
Eles seguem lentamente até que surge, por detrás do muro,
um rosto horrendo, que olha o homem do sonho. Esse olhar é suficiente
para que ele caia no chão, terrificado. Alguns momentos antes,
dizia ao amigo: "Espero não ver nunca aquela face fora do
sonho". Cidade dos Sonhos é um sonho. E um pesadelo.
O filme como que se
divide em duas partes - à maneira de Estrada Perdida: na
primeira, a história da amnésica; na segunda, uma espécie
de variação da primeira história, com as personagens
em outros papéis. Em ambas, trata-se de um sonho. Mas não
um sonho do tipo que pode ser explicado pela psicologia. Como sempre,
em Lynch, os signos não fazem referência nunca a algo externo,
mas existem em si, como signos, fundamentalmente; o sonho lynchiano não
revela nenhum desejo oculto de personagem, não se baseia em experiência
psicológica ou remete a algo fora de si mesmo. Para realizar esse
tipo de sonho, neste filme, o cineasta se vale do superlativo: atuações
exageradas e cores fortes dão o tom de seu sonho/pesadelo, que
não é em relação com a realidade, mas funciona
como um certo tipo de percepção. O seu exagero não
faz de Mulholland Drive, porém, uma caricatura risível;
antes, ele busca seriedade em cada clichê que lança – e são
muitos, sendo esse mesmo o motivo pelo qual se pensa que o filme é
somente uma repetição vazia do que o cineasta realizou até
aqui, quando, em verdade, o diálogo que se trava é com todo
um sentido de cinema – desde o momento em que decide se utilizar deles
no sentido fundante que os transformou a cada um em clichês.
Mas aqui, ao contrário
de Estrada Perdida – em que primeira e segunda parte, por se localizarem
em uma mesma dimensão, não faziam nenhum sentido juntas
– é a segunda parte que, alterando totalmente o sentido da primeira,
põe em cena o destino do qual não se pode fugir, tema tão
caro a Lynch. A segunda parte é o pesadelo da primeira e, ao mesmo
tempo, a primeira parte, a fantasia da segunda. Mas nas duas há
um ponto comum: o amor que Betty/Diane sente por Rita/Camilla, a acidentada
da primeira parte. Ou seja, estamos sempre em território lynchiano,
o terreno da paixão, terreno em que, não importa o que se
faça, há que se sempre cumprir seu destino. A paixão
aqui, leva até aquilo que os franceses chamam de effondrement,
um tipo de afundamento, de desmoronamento. É o duplo desmoronamento
de Betty/Diane que presenciamos.
Em determinado momento
do filme, as duas amantes vão assistir a um espetáculo;
nele, o mestre de cerimônias fala: "Não há
orquestra. Não há orquestra. Está tudo gravado".
Isso resume a intenção do diretor porque diz: está
tudo gravado, tudo determinado já de antemão. Não
importa o que se faça, há de se eternamente chegar ao mesmo
lugar. Nesse sentido, o que importa é muito menos a conseqüência
da ação do que ela, como percepção e experiência,
em si. E se esse é o tema que vem perpassando todo trabalho de
Lynch, ele aqui atinge, talvez, seu ponto mais alto: porque cada elemento
do seu Cidade dos Sonhos converge univocamente para um lugar,
o cinema.
Juliana Fausto
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