Dragão
da Maldade e Santo Guerreiro
Luiz Carlos Barreto
está sendo homenageado neste Festival do Rio, não exatamente
por sua carreira completa, mas sim pela existência da sua histórica
empresa, a L.C. Barreto, que foi criada há quarenta anos e produziu,
de cara, O Assalto ao Trem Pagador. Que, aliás, não
está na mostra, e eu acho muito significativo isso.
Na verdade, é
evidente que é a carreira de Barreto que está sendo homenageada,
mas o viés encontrado já mostra o perfil construído
para sua imagem pública, imagem essa que, benéfica ou não
para seus propósitos, acaba por diminuir de fato a figura histórica
e a grandeza de Luiz Carlos Barreto.
Não? Pois,
na verdade, O Assalto ao Trem Pagador é o primeiro trabalho
de Barreto no cinema, já como produtor, mas, mais do que isso,
também como roteirista. E não temos na mostra esse filme
incrível. Da mesma maneira, o único filme em que Luiz Carlos
Barreto assina a direção, Isto é Pelé,
não está presente. E, pior ainda - aí sim chegamos
ao ponto crucial –, os filmes fotografados por Luiz Carlos Barreto não
estão na mostra. Vidas Secas e Terra em Transe.
A mostra daria conta,
então, do trabalho de Barreto como produtor de cinema? Não,
infelizmente não. Não há, por exemplo, a possibilidade
de se ver lado a lado, no mesmo festival, O Padre e a Moça
e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, que foram filmados na mesma
época, em cidades próximas de Minas Gerais, ambos os filmes
com a produção co-assinada por Barreto. Não temos
também, por exemplo, Tudo Bem, de Arnaldo Jabor, e nem mesmo
a cópia restaurada do maior sucesso de público da L.C. Barreto,
Dona Flor e seus Dois Maridos. Só isso? Não. Mais
sério que isso, a meu ver, é não termos também
os filmes produzidos pela produtora Di Filmes, que foi uma empresa cooperativa
de cinema, criada pelos sócios Barreto, Glauber Rocha, Nelson Pereira,
Diegues, Roberto Santos, Leon Hirszman e outros, que pagou as contas de
vários filmes – em grande parte dos casos através de empréstimos
bancários. A L. C. Barreto decerto é uma empresa significativa,
admirável e realmente mereceria uma mostra para que se entenda
o que ela representa para o cinema brasileiro, mas acho evidente que a
Di Filmes precisa desse tipo de revisão com mais urgência.
Se Luiz Carlos Barreto
não se resume à sua empresa, como comentei antes, o problema
grave dessa mostra é que, trazendo um retrato parcial de sua figura,
acaba servindo apenas para sedimentar uma imagem limitadora, inclusive,
de uma rediscussão dos rumos do cinema brasileiro. Pois, não
tendo o Barreto roteirista e produtor de um filme urgente como O Assalto
ao Trem Pagador, não tendo o Barreto produtor de filmes arriscados
e sem concessões como O Padre e a Moça e A Hora
e a Vez de Augusto Matraga, não tendo o Barreto que assumia
dívidas e mais dívidas em bancos para produzir seus filmes
e, sobretudo, não tendo o Barreto fotógrafo que arriscou
uma experiência revolucionária em Vidas Secas, nós
não temos como perceber de fato o que é a dimensão
histórica dele e terminaremos apenas relevando sua produção
familiar recente, a meu ver a fase mais crítica de sua carreira.
E o que é essa
carreira, senão uma das mais belas do cinema brasileiro?
E merece ela essa
imagem, a do produtor de um filme eticamente problemático como
O que é isso, companheiro?, um filme que busca traçar
um perfil mais "humano" de um torturador e acaba por escolher
como vilão do filme o líder comunista, um recalcado social
de origem operária?
O que é
isso, companheiro? e O Quatrilho são os dois filmes
da L. C. Barreto que chegaram no tão discutível alvo, o
de uma indicação ao prêmio de melhor filme estrangeiro
no Oscar americano, e são provavelmente os filmes feitos por Barreto
mais conhecidos por cinéfilos mais jovens ou mais esquecidos. E
são os seus filmes representativos de uma fase de produção
familiar – são dirigidos pelos seus filhos, e sua esposa cuida
diretamente da produção – e intencionalmente comercial,
são filmes feitos com a disposição assumida de "reconquistar
o público", nas palavras do próprio Barreto. Se O
Quatrilho tem o mérito de alcançar este intento – sem
encontrar pressupostos maiores que um singelo elogio ao "jeitinho
brasileiro" e ao acochambramento das situações e problemas
estéticos mais graves que assumir sua herança televisiva
–, O que é isso, companheiro? tem os problemas levantados
no parágrafo acima apresentados de forma incômoda, até
agressiva. Triste resultado de um olhar californiano (ou miamesco) sobre
um período tão grave, pretendendo ser ambíguo (ou
pretending to be...), o filme prefere observar as dualidades da
classe média e vilanizar o lado que não pode mais se defender.
Tornou-se o registro do uso da estrutura de melodrama popular para uma
reconstrução de fatos históricos de forma, no mínimo,
discutível – ora reinvindicando e ora renegando sua proximidade
com a realidade retratada.
Sim, foi indicado
ao Oscar, mas deveria ser esquecido, pelo bem de Barreto. Na verdade,
Barreto é muito maior que qualquer prêmio que possa vir a
receber, é muito maior que boa parte das pessoas já homenageadas
com o Oscar, tão grande quanto o produtor italiano que recebeu
um especialmente para si neste ano. Barreto fez filmes ruins? Ora, De
Laurentiis também. E, se formos contar todos os filmes citados
nesse artigos (excetuando-se os dois últimos) e somarmos à
nata dessa mostra, temos um currículo de fazer inveja aos mais
famosos produtores de cinema. Se ficou sem Oscar, talvez tanto melhor,
assim podemos esquecer esta fase. Com bom-humor, Barreto mostrou sua inteligência
ao se auto-ironizar e dizer que produziria uma comédia sobre um
produtor louco para ganhar um Oscar. Deveria fazê-lo, e acho que
eu estaria sendo impertinente se sugerisse cuidado na escolha do diretor.
De todo jeito, vale
a pena ver – ou rever – com atenção aos filmes da mostra.
Decerto para notarmos o processo de familiarização
da produção da L. C. Barreto, mas também para notarmos
como os filmes feitos especificamente por esta empresa tiveram, ao longo
da sua história, uma ambição de diálogo com
o público, alcançando às vezes grandes momentos.
E quais são esses momentos?
Garrincha, alegria
do povo, o filme mais antigo sendo apresentado. Na idéia de
Joaquim Pedro, como já se disse, não são as jogadas
de Garrincha que trazem alegria ao povo, ao contrário, é
a alegria do povo em ir ao Maracanã e ver Garrincha que possibilita
a ele fazer suas jogadas. Barreto não só produziu como também
participou das filmagens. Como ele mesmo contou numa entrevista que será
em breve publicada na Contracampo, o fotógrafo Mário Carneiro
entregou-lhe uma câmera num dia de filmagens de um jogo no Maracanã
e mandou ele e Glauber Rocha para o alto do estádio, para filmarem
o jogo visto de cima. Entra para o folclore do cinema brasileiro a situação
relatada por Barreto nesta entrevista, em que ele e Glauber estão
no alto do Maracanã com uma câmera de cinema e não
sabem fazê-la funcionar.
Bye Bye Brasil,
certamente um dos pontos altos da carreira de Diegues, uma representação
do artista mambembe buscando – e perdendo – seu público Brasil
afora, e, mais que uma representação, um filme de viagens
por um país que estava se dando conta de que estava mudando, não
sei se para melhor ou para pior, estava ficando maior e mais complexo,
mas decerto não estava ficando mais justo.
Inocência,
também um dos melhores momentos de um artesão admirável,
Walter Lima Júnior, o filme é lindo, um canto para um amor
infeliz.
E, sobretudo, Memórias
do Cárcere. O projeto de uma nova adaptação de
Graciliano, que Nelson Pereira vinha acalentando já havia décadas,
enfim produzido graças ao esforço de Barreto e do diretor.
É um filme especialmente significativo, sabido é que trata-se
do retrato de uma prisão produzido no final de uma ditadura. Talvez
a mise-en-scène mais clássica entre os filmes de
Nelson, Memórias do Cárcere atingiu sua audiência
em cheio e tornou-se um desses filmes-marcos de uma cinematografia. Revê-lo
e re-entendê-lo com um novo olhar não seria tarefa a se dispensar.
Além destes,
vale notar filmes como Lição de Amor, do diretor
(e montador) Eduardo Escorel, e Menino do Rio, de Antonio Calmon,
figura central, anos depois, na criação de uma certa linguagem
na televisão. Ambos os filmes têm seu charme e merecem a
revisão.
(Apesar do horário
de onze da manhã, apresentação única, não
ajudar... essa mostra será reprisada?)
De todo modo, é
preciso elogiar Barreto no que ele teve de melhor, inclusive para podermos
repensar trajetórias para o cinema brasileiro diferentes da que
ele se filia e luta para proteger nos dias de hoje. Porque, mesmo tendo
agora uma imagem pública de defesa de um formato de produção
caro, familiar e pouco inovador, Barreto tem o vistoso trunfo da força
da sua carreira, ele é simplesmente o mais destacado nome da produção
de cinema no Brasil já há décadas. Acho que enriqueceria
muito nossa compreensão da história da cinematografia nacional
comparar sua importância neste determinado momento do cinema brasileiro
com a de Adhemar Gonzaga na sua época. Gonzaga também era
reconhecido por todos como o maior produtor de cinema brasileiro, mas
o cinema de sua época era menor que ele – Gonzaga era figura central
absoluta de um determinado período, em que a produção
mais constante era dos estúdios da sua Cinédia, que ele
bem quis que se inspirasse nos moldes hollywoodianos. Hoje, Barreto é
grande, mas será o primeiro a reconhecer que o cinema brasileiro
é muito maior que ele. Na época de Gonzaga, uma imensa parte
dos que queriam fazer cinema entrou em contato com ele, fosse através
da Cinédia ou, antes, através da sua revista Cinearte –
inclusive Humberto Mauro e Mário Peixoto. Hoje, Barreto precisa
lutar com unhas e dentes para manter seu quinhão diante daquilo
que nosso caro Secretário do Audiovisual chamou de "canibalização
dos recursos".
São, mesmo
que às vezes não percebamos, figuras fundamentais, admiráveis
na sua obstinação apaixonada de viver de fazer cinema. Barreto
poderia viver de televisão com mais tranqüilidade e menos
desgaste, assim como Gonzaga decerto teria outras maneiras de ficar (mais)
rico, mas é cinema que quiseram sempre fazer.
Numa aula dada em
Niterói, diante de um aluno que reclamava das complicações
de produzir cinema e se revelava desanimado ante a hipótese de
abrir empresa produtora e viver de fazer acontecer seus projetos, Nelson
Pereira saiu um pouco da sua calma habitual e esbravejou: "Mas
não interessa! Tem que ir lá e fazer! Senão não
dá!...".
É isso aí.
Barreto foi lá e fez. Fez e aconteceu. A gente não pode
esquecer que a lição que a gente tem que aprender é
essa.
Daniel Caetano
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