A Professora de Piano,
de Michael Haneke


La Pianiste, França/Áustria, 2001

Uma palavra antes de tudo sobre Michael Haneke: com A Professora de Piano, ele deixa de lado o filme painel e a aproximação diretamente sádica com seus personagens e espectadores para mergulhar num estudo psicológico, que certamente não exclui o sadismo nem a preocupação por inscrever suas intrigas num quadro da atualidade política européia, mas que já se encontra em outro estágio de sua pesquisa. A se julgar unicamante por Funny Games e Código Desconhecido, os únicos filmes de Haneke com exibição comercial no Brasil, seu novo filme é o único que apresenta de fato personagens. Ao invés de cair nos tipos caricatos de seus outros filmes, A Professora de Piano se quer uma análise mais aguda, um olhar mais determinado a buscar as nuanças de comportamento das pessoas que habitam o relato.

A pergunta: Haneke consegue suficientemente sair do registro da tipologia, do inventário das violências e das mazelas da sociedade contemporânea para realizar um estudo mais aprofundado, construir personagens e analisar suas motivações? Sair da horizontalidade de suas ficções generalizadas e generalizáveis para a verticalidade da análise fina e fria de uma psicologia? A resposta: não. Em A Professora de Piano, as intenções de Haneke são sem dúvida mais dignas, sem o turbilhão de má-consciência dos filmes anteriores que o fazia explodir toda a violência anômica da sociedade contemporânea na cabeça do espectador. Mas o que parece ser uma profunda verdade sobre o cinema de Michael Haneke é que ele é incapaz de ir até o limite daquilo que ele coloca em cena, jamais fazer do cinema uma tentativa, mesmo frágil, de compreensão das coisas que ele filma. Ao contrário, ele é cínico demais para poder se identificar a seus personagens ou às situações que seus relatos fomentam. Assim, um estudo psicológico, mesmo mais interessante do que uma metralhadora giratória, não parece o terreno adequado para Haneke fazer seu cinema.

Mas engana-se quem pensa que A Professora de Piano é um filme totalmente destituído de interesse. A começar pelo primoroso trabalho daquela que vem se revelando há alguns anos como a maior atriz do mundo em atividade: Isabelle Huppert. Na pele da pianista Erika, ela realiza um de seus trabalhos mais pungentes, e talvez o mais difícil de todos, o de uma rígida professora de piano especializada em Schubert, que mantém para com seus alunos e para consigo mesma uma lógica draconiana: impossível errar, nunca está suficientemente bom, etc. Nenhum carinho, nenhum calor em nenhuma as relações que ela desenvolve em sua vida. O primeiro plano já revela sua existência doentia com sua mãe: supervigiada, ela chega atrasada em casa, tem seu novo vestido rasgado como vingança e esbofeteia a mãe. À noite, depois das desculpas dadas, as duas dormem na mesma cama. O universo privado de Erika só existe do ponto de vista de sua sexualidade: ela freqüenta lojas especializadas em sexo, rasga seu órgão sexual, prepara longos processos de autoflagelação... Essa rotina é mudada com a entrada em cena de Walter, um jovem que se apaixona por ela e que aos poucos vai seduzindo a outrora controlada professora.

A partir daí, A Professora de Piano segue por dois caminhos, um belo e outro lamentável. No primeiro, estão as cenas em que Erika entra em estado de perdição, que chegam a evocar até o maior cineasta da ternura, François Truffaut, e sua Adèle H. Quando observa-a aos poucos perdendo todo o controle e a compostura construídos ao longo de muita disciplina, o filme ganha muito e tem momentos de verdadeira beleza. Entretanto, há uma ocasião em que a narração se descola dos personagens e Haneke opera uma "colocação em ridículo" das situações de desejo no filme. A partir daí, A Professora de Piano cassa toda positividade do desejo da professora para fazer rir (a alguns) ou chocar (a outros tantos); um ou outro, tanto faz: o que importa é que a partir do momento em que Erika revela a Walter toda a sua lista de desejos, há no filme um chamado à normalidade, à moralidade sexual "normal" que minam todas as possibilidades de transformar o filme numa verdadeira experiência com a alteridade. Torna-se o que é: o primado do mesmo e o recalcamento do diferente.

O interesse maior do filme, o fato de uma professora de piano bem elevada nos melhores meios sociais, inteligente, estudante rigorosa e especialista na mais fina música – e lembre-se aqui que, afora a música, a Áustria só nos deu Adolf Hitler –, ser também capaz das atitudes mais espúrias e (sexualmente ou não) nojentas, poderia ser melhor trabalhado e, o que é mais grave, não tem nada de novo. Desde o nazismo pelo menos sabe-se que há uma linha muito tênue entre o saber e o mal ou, se se quiser, projetos "altos" como a filosofia ou a música mais erudita podem redundar no mais firme projeto de destruição do outro e de si mesmo. O laço entre a música e o desejo sexual da professora Erika (aquilo que é mais importante no filme) fica pouco nítido, enquanto o lado anedótico, derrisório, "negro" do desejo da personagem aparece o tempo todo. Ao mesmo tempo, a obrigação sádica comanda, Haneke faz tudo para extrair do espectador efeitos de choque físico. Impossível dizer que ele não consegue o que quer: é um diretor competente, muito competente, e sabe disso. Agora, o sentido das operações de choque que realiza, esse sempre nos falta, à exceção de o entendermos como uma pura relação sádica, dessa vez dirigida ao próprio espectador. Bom, há quem goste.

Ruy Gardnier