Kippur,
de Amos Gitai
Kippur, Israel, 2000
As primeiras imagens
do filme de Gitai são impressionantes e ao mesmo tempo intrigantes:
um homem passeia pelas ruas vazias de uma grande cidade israelense. Claro
que todos os que saibam do que se trata a história podem localizar
a referência, mas ainda assim esta imagem irreal e ainda assim conseguida
sem maiores efeitos visuais, nos tira de tal forma da nossa zona de conforto
com a realidade, que o diretor atinge seu objetivo: com pouco mais de
dois minutos de filme, o espectador está inserido numa viagem ao
quase surreal mundo do que seja "estar em guerra". É óbvio
que hoje, dia 19/9/2001, esta imagem e qualquer outra do seu caráter
tem um efeito muito especial em que as assiste, porque estamos pouco mais
de uma semana depois de termos assistido uma das mais surreais cenas reais
da História, e às beiras de um desconhecido dia seguinte
destas. Mas o principal é que o filme de Gitai, e tudo que virá
a seguir na tela consegue responder a velha questão: será
que depois disso tudo que o mundo já nos apresentou o cinema de
ficção ainda consegue apresentar imagens que realmente mexam
conosco? A resposta é sim, para quem quer que veja este filme.
A partir desta imagem,
o filme irá se transformar num longo ensaio sobre a completa insanidade
da guerra. Até aí diz-se pouco, pois já houve inúmeros.
Mas a diferença do filme de Gitai é conseguir se colocar
numa estranha zona entre o surreal/simbólico e o realismo extremo.
Ou seja, nem ao Sul como um Kusturica, um Coppola, um Angelopoulos, um
Terence Malick; nem tanto ao Norte como um Spielberg ou um Stone. Ele
não consegue se distanciar o suficiente do tema (até por
ser baseado na sua vivência) para tirar filosofia e arte puros de
uma vivência humana única como a guerra, mas também
não consegue comprar o furor quase orgásmico do realismo
que beira o sadismo em reproduzir o irreproduzível. Sábia
posição, que é o diferencial que torna seu filme
um trabalho feito para ficar.
Alguns pontos precisam
ser destacados para se entender o que faz o filme excepcional. Primeiro:
ele se recusa a estabelecer uma narrativa. Tornar a guerra uma "odisséia"
(e pensamos logo em Soldado Ryan) é obrigatoriamente um
ato calhorda, porque a guerra não tem fim, não pode ter
objetivos, desenvolvimentos. Estar em guerra é como o filme de
Gitai: uma série ininterrupta de atos de insanidade. Os personagens
evoluem sim, ou melhor, involuem rumo a um quase transe enlouquecido.
Mas nisso não há nem sombra de um "percurso de herói".
As cenas se sucedem até o espectador sentir que não mais
pode suportar, não o seu teor gráfico (porque quanto a isso
o filme é fichinha perto de tantos outros), mas acima de tudo sua
aparente (e verdadeira) falta de propósito, de caminho.
Outro ponto importantíssimo:
não há heróis ou vilões no filme. Não
há um lado para se torcer. Este talvez seja o mais subversivo elemento
de filmagem de Gitai, algo ainda mais surpreendente se pensamos que o
conflito que ele filma é, de fato, um conflito ainda inacabado.
Não tomar partido. Isso nem mesmo Terence Malick no seu filme-poema
quase zen conseguiu. Há cenas em Além da linha Vermelha,
onde torcemos sim pela morte de japoneses para a sobrevivência de
americanos. E assim é na imensa maioria dos filmes de guerra. Mesmo
quando tentam ser "justos" com o outro lado, sua narrativa pede implicitamente
nossa torcida por alguém. Em Kippur o adversário
nem aparece, em qualquer momento. Ouvimos menção a eles
no rádio, mas nem mesmo é julgado que lado está correto
em atacar a quem. Há apenas isso: seres humanos se matando. Há
bombas e há tiros. Mas há, acima de tudo, pessoas tentando
de tudo para sobreviver e salvar vidas. Há pessoas percebendo que
na brincadeira de Deus o Homem é muito falho. E a derrota, de todos,
iminente e onipresente.
Há ainda em
Kippur a capacidade de misturar tudo aquilo que nos torna tão
completamente humanos com o que há de mais épico no mundo.
Ou seja: ele reconhece que a guerra é um estado exacerbado que
traz à tona tudo que há no humano, seja de bom ou de ruim.
Em suma, de humano. Assim imagens como a dos tanques vagando por uma paisagem
marcada por suas rodas sem que se entenda para onde eles vão, de
onde vêm, porque se movem, onde está o inimigo, é
tão representativa no seu poder simbólico do completo absurdo
da guerra como as extremamente realistas cenas do ataque ao helicóptero
e no hospital. Os olhares sem direção dos homens no campo
de batalha ou no hospital não parecem menos loucos do que os tanques
que vagam como crianças sem objetivo. Ou seja, nos diz Gitai: a
guerra é o que há de mais surreal e profundamente real na
vivência humana, misturados de forma que impede sua separação.
Tratá-la como abstração é um desrespeito quase
tão grande quanto fetichizá-la em seu realismo. Por isso,
quando as imagens de Gitai soam reais, elas não possuem o sensacionalismo
da invasão da Normandia de Spielberg, que era muito mais uma cena
sobre o poder do cinema de ser "real" sobre a mágica e o domínio
da técnica de uma equipe de cinema (basta ver sua recepção
no mundo todo), do que sobre o drama humano que se desenrolava. Em Kippur
a câmera NUNCA é mais importante do que o que se desenrola
à frente dela.
Se há um elemento
técnico que impressiona no filme, aliás, talvez seja o mais
discreto deles em todos os filmes: a edição de som. Porque
o fato é que ao invés dos milhões de uma produção
hollywoodiana, Gitai reproduz uma guerra de quase 30 anos de idade sem
nenhum requinte de reconstituição, porque a guerra mesmo
está quase toda fora de quadro. Onipresente no inconsciente de
todos, mas sem precisar aparecer uma só vez. Claro haverá
os mais pudicos que se chocarão com a brutalidade de algumas imagens.
Mas, imagens brutas são tão válidas quanto imagens
de sonho. O que importa é o que se quer atingir por exibi-las.
E em Kippur fica claro que o seu efeito no espectador está
longe do fascínio, e muito mais ligado à incompreensão
e ao fastio. É um filme que pede ao seu final um suspiro de "Chega,
eu não aguento mais!", como indica o próprio filme com a
volta do personagem ao lar, a mesma pessoa, a mesma cena (como é
o mesmo espectador que está na cadeira ao fim do filme), mas definitivamente
nunca mais os mesmos. Nem personagem, nem espectador. E não se
pode pedir nada mais de um filme.
Eduardo Valente
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