A Inglesa e o Duque,
de Éric Rohmer


L'Anglaise et le Duc, França, 2001

Há muitos filmes sobre História. Entretanto, são poucos os filmes que entretêm uma relação tão sincera e apaixonada com a História que parece que ela se faz diante de nossos olhos. A Inglesa e o Duque é um desses grandes filmes. Baseado no diário de Grace Elliott, uma aristocrata inglesa, o filme conta diversos episódios da Revolução Francesa pós-Bastilha, mas respeita a dimensão de diário do livro e todos os acontecimentos que emergem nos são experimentados pelo filtro de Grace, que não desaparece jamais dos nossos olhos. Só que Grace é fiel devota do Rei e dos realistas, e não consegue ver a Revolução senão como o triunfo da deselegância, da morte de Deus (o que de fato ela é), da injustiça e da selvageria. Ela é um personagem que a História deixa para trás, uma mentalidade já morta hoje, e mesmo em processo de apodrecimento naquele período. Da mesma forma que o personagem de Burt Lancaster em O Leopardo de Visconti, Grace Elliot reconhece que a vida tal como ela conhecia chegou a um fim. Ao contrário do herói de Lampedusa, ela jamais conseguirá reconhecer alguma beleza na classe ascendente e nunca aceitará de bom grado a sua própria morte como classe. Daí que os três anos que o filme relata nos sejam mostrados de uma forma absolutamente diferente daquilo que a história oficial nos ensina.

Grace Elliott é a maior amiga do Duque de Orléans, o "Filipe Igualdade" da História. Ora, o duque representa justamente a maior contradição do período. É um aristocrata que se coloca do lado dos revolucionários na luta contra a nobreza. Por ânsia de chegar ao poder ou por real convicção de que o Rei era prejudicial ao Povo francês, jamais iremos saber: A Inglesa e o Duque não é uma História da Revolução Francesa, mas o olhar pessoal de uma mulher que não pode compreender todos os acontecimentos a que assiste senão do ponto de vista de sua própria sobrevivência. Assim, o filme nos dá cenas comoventes, como a que Grace observa de longe e do alto, através do relato de sua criada, que observa com uma luneta a cerimônia da morte do Rei. Quando uma movimentação incomum parece ter lugar, Grace logo se apressa a interpretar o ocorrido como o que gostaria que fosse: uma insurreição popular para salvar o monarca. Mas nada de tal acontece.

A grande genialidade e o maior fator diferencial de A Inglesa e o Duque não são, no entanto, de ordem histórica, mas sim narrativa/plástica. A Paris do final do século XVIII é reconstituída não pela direção de arte e pela cenografia, mas por um curioso processo digital que transforma telas de pintura em cenário imaginário, com personagens se movimentando de cima a baixo. O efeito obtido é algo de inaudito. Os quadros, além de uma beleza notável – e observar os personagens caminhando por dentro da composição é muito sedutor –, transmitem à imagem do filme um estatuto surpreendente. Surpreendente menos pela graça e sedução que emergem das telas transformadas em cenários, mas pela relação que o espectador passa a assumir com aquilo que vê na tela. É de fato um dos filmes que mais pensa a questão da História e da sua transmissão. Pois não temos com a imagem em A Inglesa e o Duque a relação muitas vezes espúria dos filmes "históricos", que nos insistem em fazer crer que "estamos lá", que tudo que vemos é verídico, sem ambigüidade, verdade absoluta e não reconstituída. Os quadros que Rohmer coloca como cenários nos dão um distanciamento bastante diferente daqueles aos quais estamos acostumados – o brechtiano principalmente.

Daí a leveza e a clareza do filme. Todas as conversações de Grace com o Duque de Orléans não são simplesmente os diálogos de dois amigos, mas também o embate filosófico entre o mundo que muda e aquilo que deve ficar para trás, entre a visão conservadora e "humana" de Grace e a defesa incondicional da Revolução, mesmo que violenta, por Orléans. Filtrados pelos olhos da inglesa, alguns eventos do filme nos parecem monstruosos: a decapitação e exibição em praça pública das cabeças dos nobres (incluindo as filhas menores de idade da aristocracia), a invasão domiciliar, a conspiração, a perseguição, os boatos... "A Revolução não é um jantar de gala", já dizia Mao Tse-tung. A Inglesa e o Duque retoma a dimensão nada-jantar-de-gala de qualquer revolução, sem pintá-la como a experiência redentora que instaura uma nova época da Humanidade.

Mas A Inglesa e o Duque não é um filme contra a Revolução, contra o terror jacobino, ou a favor da aristocracia e da monarquia. Do ponto de vista da realização, o filme é neutro a todos os eventos e personagens. Fiel ao caráter de diário da inglesa Elliott, o livro nos identifica a seus dramas e nos faz torcer para que ela permaneça viva. Mais que isso, nos faz entender tudo que a leva a agir de uma forma absolutamente anti-revolucionária. A Inglesa e o Duque é um desses grandes filmes que, de tão associados que estão a seus protagonistas, nos mergulham num mundo em que a História jogou o anátema. Grace salva da forca um inimigo da república, despreza profundamente a população, dá todos os nomes feios possíveis aos revolucionários (que não são encarados do ponto de vista político, mas apenas na dimensão de agitadores, de bárbaros). A identificação a Grace, dada pela opção por seguir os passos de seu diário, e o distanciamento causado pelo cenário recriado, nos criam um teatro das idéias, mas um teatro que não é didático ou ilustrativo, que não está interessado em pregar mas em colocar problemas. Estamos próximos de Renoir, onde a História só pode ser encarada do ponto de vista de seus personagens, das vidas que a movimentaram (logo, o exato oposto de filmes históricos como Danton ou Mauá). Em A Inglesa e o Duque, vemos antes de tudo Grace, uma mulher com um fabuloso desejo de seguir aquilo que acha correto, e isso conseguimos compreender porque Rohmer nos concede. Sua vaidade, suas contradições, suas motivações. Ela pertence a um outro mundo, hoje acabado. Para ela, a França é a coroa francesa, o homem que carrega a coroa. Para o Duque de Orléans, a França é o povo francês. Grace pertence ao mundo que morreu, não tem códigos de interpretação para encarar o novo mundo que se descortina. A Inglesa e o Duque é um filme sobre o limiar de um novo mundo, sobre o abismo que existe entre duas concepções. Grace já aparece aos nossos olhos morta, anacrônica, com a graça própria das relíquias que obtêm seu charme pelo simples fato de serem únicas. Mas ela é mais do que isso: é também um personagem veemente e eloqüente (ela precisa falar para permanecer viva). Fiel, A Inglesa e o Duque segue até as características de sua personagem: é unico, veemente e vivo. E brilha.

Ruy Gardnier