Que
Horas São Aí?(SP)/
Hora
da Partida(RJ),
de Tsai Ming-liang
Ni nei pien chi tien,
Taiwan/França, 2001
Vive l'Amour
Um novo filme de Tsai
Ming-liang é mais uma chance para reencontrar um dos mais importantes
cineastas da atualidade, uma das mais rigorosas encenações
do cinema contemporâneo, e um mundo minimalista, baseado sempre
nos mesmos e poucos detalhes, que trabalha mais em cima da ratificação
do mesmo do que na pesquisa do novo. É, aliás, da exacerbação
dos mesmos motivos que ele consegue extrair todos os efeitos de um O
Rio ou um O Buraco. Então, é algo de esquisito
pedir sempre "algo novo" de um cineasta que trabalha a partir do tema
do "mesmo"; em contrapartida, o trabalho em cima do mesmo pode logo logo
se desarmar, tornar-se óbvio, uma "marca" antes de uma "estética".
É o que acontece com muitos dos minimalistas ou dos artistas contemporâneos,
que precisam de algo como uma marca para dar-lhes autoralidade (exemplos:
Philip Glass, Greenaway). Só que Tsai pertence a outra vertente,
uma arte minimalista mais diligente, astuciosa. E Hora da Partida só
vem provar isso: utilizando-se do mesmo universo do mesmo, de sua mesma
pesquisa formal, narrativa e dramática, Tsai consegue adicionar
um simples ingrediente à receita e realiza mais um grande filme.
Pois, antes de ser
um outro filme sobre a solidão contemporânea, sobre os rituais,
sobre o subemprego, sobre a impossibilidade de externar os sentimentos,
sobre tudo aquilo que enfim são os quatro filmes anteriores de
Tsai, Hora da Partida é um filme sobre o envelhecimento
dos corpos, sobre o tempo. Era estranho que até hoje ninguém
tivesse se dado conta da semelhança entre o projeto de Truffaut
com Jean-Pierre Léaud (filmar os diferentes estágios da
vida de um ator/personagem) e o de Tsai Ming-liang/Lee Kang-sheng. Foi
o próprio Tsai que fez questão de escancarar a porta dessa
vez e colocar ele mesmo esse problema às claras nesse novo filme:
enquanto o eterno Hsaio-kang (o Antoine Doinel de Tsai) assiste a Os
Incomprendidos, a mulher por quem ele se apaixona está na França,
num cemitério, e encontra-se com o mesmo Jean-Pierre Léaud,
quarenta anos depois.
Mas mesmo que não
houvesse essa subtrama, o teor do filme seria inequívoco. A primeira
imagem que vemos de Hora da Partida revela um senhor, o pai de
Hsiao-kang, que grita o nome do filho e, fumando um cigarro, sai do primeiro
plano para o fundo da cena. A imagem seguinte mostrará Hsiao-kang
num táxi, carregando uma urna funerária: assim, sabemos
da morte de seu pai. No último e enigmático plano do filme,
o mesmo ator do primeiro plano do filme reaparecerá, bem mais envelhecido,
evocando uma espécie de fantasma e anjo da guarda. Entre o começo
e o fim do filme, não há uma ascese ou uma homenagem à
figura paterna (embora o filme seja dedicado aos pais do diretor e do
ator principal), há o tempo que passa. E o tempo que passa significa
necessariamente o tempo em que se pode morrer.
Assim, a morte paira,
disfarçada de tempo, sobre todo o filme. É Lee Kang-sheng
que é filmado por Tsai desde 1992, em Rebels Of The Neon God,
são os estranhos rituais realizados a partir da morte do pai de
Hsiao-kang, é a bizarra crença da mãe que o espírito
do pai retornará, como em metempsicose, seja como uma barata, seja
como um peixe, seja como um espírito que muda o horário
do relógio. A morte está presente, também, com a
desesperada tentativa da mãe de impedir que o espírito abandone
a casa colocando fita crepe em todos os vãos de porta do apartamento.
É sempre questão de tentar jamais deixar o tempo se esvair,
a morte realizar seu trabalho.
O tema constante de
Tsai Mig-liang, no entanto, é muito menos a morte do que o recrudescimento
das relações em vida. Novo cineasta da incomunicabilidade
(o maior desde Antonioni), seus personagens são quase incapazes
de construir relacionamentos. Em Hora da Partida, Hsiao-kang é
um camelô. Ele vende o relógio para uma bela jovem que está
de partida para a França. Os dois, sem saber, se apaixonam, só
que a relação será impossível porque eles
estão a quilômetros de distância (e porque ora ela
não consegue falar ao telefone, ora ela não tem mais o telefone
dele). O jeito será então ajustar todos os relógios
da cidade para o fuso francês, assistir aos filmes franceses, dormir
com uma prostituta (Hsiao-kang), ou visitar cemitérios, chorar,
beijar sem sucesso uma amiga que se acaba de conhecer (a garota). Nunca
o acting-out nos filmes de Tsai foi tão forte (e nunca serviu
com tamanha força como dispositivo). Geralmente passivos, contemplativos,
em Hora da Partida os personagens se arranjam para de alguma forma
(mesmo equivocada) tentar afogar suas angústias. Há também
alguns gestos de solidariedade, de calor humano, coisa impossível
de achar em seus filmes anteriores. Por mais que nada disso faça
a vida dos personagens mais felizes, servem ao menos como um fio d'água
num mundo de sentimentos desertificados e/ou de sentimentos deslocados.
Há ao menos
duas cenas primorosas, que dão a dimensão da pesquisa formal
de Tsai assim como da dimensão quase maníaca que atribui
a seus personagens. Numa delas, um plano do alto, distanciado, vê
Hsiao-kang utilizar uma antena de prédio para modificar o fuso
de um grande relógio da cidade. O ângulo em que é
colocada a câmera, no entanto, faz com que as janelas espelhadas
do prédio dêem ao plano uma beleza surpreendente, quebrando
a monotonia da composição. Outra, ao final do filme, mostra
a turista francesa dormindo num parque, e sua mala flutuando num rio que
está à sua frente. Do nada, magicamente, aparece um pombo,
que faz o caminho contrário da mala, na borda do rio. Instante
em que a mestria do diretor se conjuga com a beleza instauradora do acaso
e nos dá um grande momento de cinema. Porque se o grande tema do
filme é a luta contra o tempo, contra a morte, o plano do pombo
serve antes de tudo para eternizar, para guardar aquele momento, entre
tantos outros, destinado à morte. O filme termina sob um estado
de confusão, o espectador não sabendo eventualmente muito
do que viu. Silêncio total, uma troca de olhares é quase
fatal. Tsai evolui aos poucos. Ele continua fazendo seu filme, e vai aos
poucos adicionando novos elementos que rearranjam os antigos. Hora
de Partida o confirma como um dos grandes cineastas contemporâneos,
um dos poucos ainda capazes de criar com o cinema uma ferramenta para
se viajar sem sair da sala escura...
Ruy Gardnier
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