Elogio
do Amor,
de Jean-Luc Godard
Eloge de l'Amour, França,
2001
Elogio do Amor
é um filme que desafia o espectador. É um filme que desafia
o olhar, pois questiona a nossa percepção do cinema, frustra
a nossa expectativa do que deva ser um filme. Já dizia mestre Jean-Luc:
"um filme deve ter início, meio e fim. Mas não necessariamente
nessa ordem". Para além da simples boutade, o que queria
dizer Godard com isso? Frisar a importância central da estrutura
numa obra cinematográfica, a importância do trabalho de montagem
a nível global e não somente local. A montagem é
o que dá sentido ao todo; melhor: o que produz o sentido do todo,
fazendo com que as partes contribuam para a aparição de
algo que não se encontrava em nenhuma delas. E afirmar que, portanto,
um filme é mais do que a história que está contando.
Neste sentido, Elogio
do Amor é talvez a obra mais construída de Godard. Uma
obra cuja estrutura nada deixa ao acaso, revelando, caso ainda fosse necessário,
a mestria do cineasta franco suíço da arte cinematográfica.
O filme divide-se em dois blocos temporais esteticamente distintos, onde
o passado, filmado em vídeo e colorido, sucede ao presente, em
filme preto e branco. Para além dessa demarcação
maior, vão desfiando pequenas sequências tenuemente ligadas
entre si. Aos poucos vai se desenhando algo, idéias, sentimentos,
uma visão. Cada parte parece então ressoar na outra,
cada sequência estar no lugar certo, no momento exato.
Edgard busca em vão.
Ele procura atores para o seu projeto, procura a forma adequada para este
(um filme, uma ópera?), procura um adulto. Mas não encontra.
O presente constrói-se em torno desta busca e do seu fracasso.
Da ausência de respostas, de um homem assaltado pela dúvida,
ao qual o mundo, opaco e soturno, dá as costas. É uma Paris
melancólica que se expõe a nós, envolta na noite,
habitada por uma humanidade fria, miserável. Quando descortina-se
o dia, é sobre um subúrbio industrial, sobre as ruínas
do proletariado, sobre um encontro frustrado.
Quando voltamos ao
passado, as cores invadem a tela, em alto contraste, numa forma de fauvismo
digital. A natureza está presente, bela, majestosa. Enquanto Edgard
busca informações a respeito da resistência, um grupo
de americanos está comprando a história de um casal de resistentes
para transformá-la num grande filme hollywoodiano. O velho casal
está disposto a vendê-la em troca de um bom dinheiro, a neta
tenta resistir, acusando os americanos de tomarem para si o passado dos
outros. Estados Unidos: um país sem nome e sem passado. Mais uma
vez, tudo se encerra num encontro, com a mesma mulher, dois anos antes,
quando tudo ainda era possível.
Não há
como contar a história do filme. Não por não haver
história, mas porque esta não é contada como se esperaria,
não se desenrola de modo linear e claro. Como na vida, as coisas
vão acontecendo, soltas, sem que se possa concatenar uma linha
narrativa entre elas na hora em que acontecem. Não se pode descrever
um adulto assim como não se pode entender o presente. Somente quando
tudo aconteceu, quando de certa forma já é tarde, é
que se consegue construir algo, dar sentido ao todo. E quando ao final
tudo ocorreu, não é a história de Edgard, sua busca,
sua tentativa de criar uma obra a respeito de um momento do amor que assoma
e sim as reflexões que vão tecendo ao longo do filme uma
visão sobre o mundo, o papel da História, o lugar do homem.
"É quando
uma história termina que ela começa a fazer sentido"
diz a certa altura uma personagem do filme. O passado explica o presente
do filme. A História explica o presente da humanidade. O Godard
historiador manifesta-se uma vez mais e vai buscar na 2ª Guerra Mundial
e na história da resistência, recusando dela a velha imagem
romântica, a chave do nosso presente. Vai retomando o fio do pensamento
cristão que vem sendo o seu, colocando sua visão da história
à luz da filosofia de Simone Weil, e a sua concepção
do cinema no rastro de Bresson. Retoma para si a fascinante teoria de
Pasolini da montagem como instrumento de construção do sentido.
Mas no fundo, disto tudo o que fica, é algo de profundamente godardiano:
não são imagens em si, mas ecos, circulações,
todo um fluxo entre as imagens. Não linear, não verbal.
Algo buscado pelo cineasta desde os tempos de Pierrot le fou. Uma
forma de pensamento pela imagem.
Godard passeia um
olhar perplexo de filósofo sobre o momento atual, ao mesmo tempo
melancólico e otimista. Melancólico pois o cineasta inscreve-se
numa tradição artística que considera desaparecida.
Tudo é perda, e o tempo destruiu as esperanças nascidas
ao final da guerra de um mundo melhor. Otimista, pois Godard ainda quer
acreditar no ser humano e na beleza do mundo. "Aguardo o fim do cinema
com otimismo" disse ele certa vez. O final, filmado com um instrumento
que o cineasta assumidamente despreza, o vídeo, as cores propositadamente
estouradas, é uma profissão de fé no ofício
de artista, na possibilidade de criar imagens novas. Ou seja: de pensar
de maneira nova. Com seus experimentos, o jovem Godard mostra que a imagem
ainda encerra em si possibilidades maiores que o conformado cinema atual,
assim como a humanidade é maior do que nossa época mesquinha.
Então por favor,
leitor amigo, só não saia do filme dizendo: "Isto não
é cinema!"
Carim Azeddine
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