Elegia de uma Viagem,
de Alexandr Sokurov


Elegia Dorogi, Rússia/Holanda/França, 2001

Um pequeno filme-ensaio, em que se vê com clareza todas as principais preocupações dos filmes de Sokurov, uma necessidade de retrabalhar a imagem, de jamais dar ao espectador uma imagem clara, simples, direta, mas antes mistérios, imagens filtradas (pois é do uso de filtros, de fato, que se trata) onde a realidade está absolutamente escondida por trás de um véu que sempre recobre aquilo que vemos.

De início, uma forte impressão: Alexandre Sokurov faz cinema para ter a possibilidade de poder registrar a presença de Deus. No início de Elegia de uma Viagem, como antes em Dolce , há generosos minutos dedicados unicamente à mostrar a força das intempéries da natureza. Sokurov nunca filma em ambientes calmos, mornos. São antes nevascas, tempestades, ventanias, ou calor extremo. É o poder da divindade, a natureza como expressão de um poder maior do que o homem, que o guia, que mostra seu poder diminuto frente a tanta força.

Elegia de uma Viagem começa como um caderno de notas. Intercalado às impressionantes cenas externas, onde os protagonistas são a neve, a lua, o gelo, as ruas desertas, os carros, vemos suas impressões pessoais, um encontro importante para ele, em que se discute a força de Deus e o sentido que o todo-poderoso dá. A segunda parte do filme é uma viagem ao Museu Boijmans, onde a câmera parece penetrar nas telas, onde as telas parecem reviver: vemos Vincent Van Gogh, Brueghel pai (incrivelmente a tela onde se pinta a Torre de Babel, a destruição divina da tentativa de chegada do homem ao saber absoluto) até nos demorarmos num quadro de Peter Saenredam, pintor do século XVII. O impressionante de todas essas tomadas, de toda essa Elegia, é de como é precário o acesso ao mundo exterior, como é distante a relação que há (de fato, se há) entre sujeito e objeto, entre aquele que vê e aquilo que se vê. Sokurov vê o mundo através dos olhos do solipsista: como para ele tudo são precepções, e só Deus é verdadeiro, nada que chega à imagem pode ter um bocadinho de clareza. As imagens de Elegia são sempre escuras, de uma beleza impressionante, e além disso recebem filtros digitais que sempre tornam mais de difícil acesso a relação da câmera com aquilo que ela filma. Esses filtros, entretanto de uma leveza profunda, não são tortuosos como os de Mãe e Filho nem pictorialistas como em Moloch, mas como se houvesse uma fina camada de água passando entre o olhar do sujeito que realiza o filme e o resultado de sua visão, onde os objetos se deformam de uma maneira leve e ritmada.

Isso talvez traga dúvidas em relação à natureza do cinema. Naturalmente, o cinema é a forma de registro mais direta, mais imediata de todas as artes. A arte mais atéia. Quase uma não-arte, e é nisso que reside sua grandeza. Sokurov tem o dom de transformar a clareza do cinema num sombrio mundo de tortuosidade. O que dá novamente ao cinema um caráter de religiosidade raramente possível de ser atingido (no que ele se reúne a grandes como Dreyer e Trakovski). Talvez uma batalha contra o cinema – e essa é possivelmente a principal restrição à obra de Sokurov, construir sua crença em cima da falência da crença no registro da imagem, do registro da realidade. Como grande idealista, Sokurov não tem verdadeiro acesso às coisas mundanas, que lhe parecem inexplicáveis, quase inexistentes. Essa Elegia é sua nona, mas no fundo todo filme de Alexandre Sokurov é uma elegia, ou seja, um canto de melancolia e lamento sobre a morte de alguma coisa ou pessoa. Pois a morte é sempre o elo mais profundo com Deus, e um registro, mesmo sendo a morte do momento, é aquilo que o eterniza (transformando-o em outra coisa que um momento, claro). Todo filme de Sokurov é uma elegia do registro, um canto de morte da permanência e da clareza. Nisso reside a grande beleza – uma beleza melancólica e temerosa, contudo – de seu cinema.

Ruy Gardnier