Dias de Nietzsche em Turim,
de Júlio Bressane
Dias de Nietzsche em Turim, Brasil, 2001
Fábula cinematográfica de Júlio Bressane
À época do lançamento de Os
Sermões, Bressane disse à revista Tabu (editada pelo Estação)
que fizera o filme por "razões de câmera", isto é, "para ver o Vieira
falando aqueles sermões". Esse Dias de Nietzsche em Turim, filmado
entre 1995 e 2000, repete o mecanismo. Muito do prazer que o filme proporciona
diz respeito ao puro e simples movimento do poeta-filósofo (ou, como um
dia o chamou Antônio Cândido, psicólogo artista), bem como da interpretação
positiva dos humores que o rondaram em sua controversa estada em Turim
em 1888 e 1889. Muitos intérpretes e historiadores afirmam consensualmente
que Nietzsche "enlouqueceu" neste período. A julgar pela reconstituição
de Bressane, esse processo de "enlouquecimento" não foi tão duro, arbitrário
e triste como os ouvidos menos atentos poderiam supor.
Não vou escapar da leviandade,
afirmando desde já certa desconfiança a respeito da tão comprovada "loucura"
de Nietzsche. Imagino que ele poderia ter enlouquecido como a atriz interpretada
por Liv Ulmann em Persona, ou mesmo como o Marquês de Sade. Ou
Artaud... Talvez pura conspiração daqueles que desejam por conveniência
desqualificar Nietzsche, por não saber como domesticar seu "espírito livre"...
O fato é que Dias
de Nietzsche em Turim não é um filme de intérprete, isto é, não se
pretende, através do filme, explicar no detalhe o pensamento de Nietzsche.
Podemos falar de uma interpretação dos escritos e da importância do filósofo:
o Nietzsche do Deleuze, do Heidegger, do Tugendhat etc. Quem esperar pelo
"Nietzsche do Bressane" não só incorrerá num erro metodológico, como encontrará
barreiras intransponíveis em direção aos signos que circundam o "signo
Nietzsche".
De certo, compreender
um signo intelectual como Frederico Nietzsche não é uma tarefa que demande
somente trabalho intelectual. A grande virtude do filme de Bressane reside
na sensibilidade para compreender o homem e o momento. No estilo de sua
escrita, aforismática, composta por trechos objetivos, ambíguos ou simplesmente
"sugestivos", vemos refletido o momento intelectual do filósofo. Neste
período, Nietzsche acabara de publicar Genealogia da moral (1887)
em direção ao O caso Wagner (1888) e Além do bem e do mal
(1889), seu livro mais contundente, verdadeiro testemunho da deterioração
de sua relação com a filosofia (entendida em seu sentido tradicional).
Pouco a pouco, a decomposição desta relação reafirmava uma idéia difundida
em A Gaia Ciência (1881/82) de que "um livro deve nos transportar
para além dos livros", isto é, toda a filosofia deve funcionar como um
trampolim para a atividade humana prática, para o melhoramento efetivo
das condições impostas pelas conjunturas (seu parentesco com Spinoza,
Marx, Epicuro...). Nietzsche combatia o espírito "moderno", mas isso já
é outra história...
Trata-se, pois, da atividade
humana prática. Para compreender Dias de Nietzsche em Turim é necessário
despir a carapaça intelectual e as implicações acadêmicas para então absorver
o conteúdo sensorial das imagens. Bressane afirmou na sessão de estréia
que o filme era como "um fio da trajetória de Nietzsche em Turim" e, de
fato, ele constrói os planos privilegiando os movimentos da consciência
do filósofo durante sua estada. Não é portanto um filme de interpretação
da obra, no que se segue a inutilidade das comparações entre o que está
na tela e o que está nos escritos e na tradição. É sim a interpretação
do "signo Nietzsche" no que ele tem de mais vivo, na reconstituição infiel
de pequenas fulgurações, desejos, distrações... Na tentativa de, por puro
prazer cinematográfico, "vivificar", trazer à tona materialmente as volições
e sensações que acometeram o filósofo e que, supõe-se, enredaram suas
reflexões posteriores. O texto, escrito a quatro mãos por Bressane e sua
esposa Rosa Dias, costura as imagens como se estivessem funcionando dentro
da mente do filósofo. Excertos d’O Caso Wagner e do Ecce
Homo (1888), articulados com trechos aparentemente reescritos a partir
do Além do bem e do mal, dão o grau de acuidade com que Nietzsche
parecia olhar a vida. E é este o prazer do filme: a anestesia que ele
causa no espectador é a anestesia do voyeur, aquele voyeur mais
íntimo, um voyeur psicológico.
Donde Dias de Nietzsche
em Turim pode ser considerado um filme sinestésico. O prazer das frutas,
da paisagem, da música ("Turim é um centro de música!") e, no fim, da
dança. Nietzsche dança com a máscara de Dionísio em punho, causando comoção
na casa que o hospeda. É uma cena muito interessante, fruto da observação
contínua dos textos onde o filósofo fala da dança como método de libertação
efetiva, como ato de afirmação da vida. Portanto que não se importem os
nietzschianos de cátedra com uma suposta melancolia, muitas vezes confundida
com a lentidão do filme; senão que atentem para o seu conteúdo espinosano:
antes da alegria e da tristeza, Nietzsche deseja.
É surpreendente quando
Bressane põe o filósofo para dançar e cantar a música indígena, pois parece
que os escritos nietzschianos ficam mais fortes e objetivos. A dança é
a plenitude e o filme trata de narrar a trajetória de um homem em direção
a um estado de plenitude, um estado de comunhão entre o intelectual e
o sensorial. Para muitos, sua loucura.
Bernardo Oliveira
(Problemas,
sugestões, críticas, broncas: bernieoak@hotmail.com)
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