O
Capitão Corelli,
de John Madden
Captain Corelli's Mandollin,
EUA, 2001
Existe uma tendência
do pensamento crítico, e até mesmo e principalmente do público
chamado "cinéfilo", segundo a qual há uma parte da produção
hollywoodiana que nem devia ser considerada seriamente como uma tarefa
para a crítica analisar. Seria por demais comercial, por demais
desinteressante e realizada sem grandes arroubos reflexivos, portanto
devem ser recebida assim. Os defensores desta idéia cometem um
sem-número de equívocos. Primeiro, ao se arvorar tamanho
poder quanto o de definir o que é ou deixa de ser relevante. Peca
pela falta de humildade. Segundo por considerar o filme uma obra de arte
intocável e fechada em si, de tal forma retirada do mundo que simplesmente
podemos analisá-la pela concepção do artista, como
se fosse um corpo livre do contato com o mundo. Peca pela miopia. Terceiro
porque ignora as tantas injustiças já cometidas na história
do pensamento em virtude desta mesma desculpa. Peca por ignorância.
E, finalmente, peca porque não consegue ver o quanto há
para se analisar de um momento do cinema, do país, do mundo, a
partir de um filme e sua relação com temas e público,
independente de nobreza artística. Peca por soberba.
Tudo isso para dizer
que, provavelmente, muitos críticos definirão O Capitão
Corelli como um destes filmes que nem merecem atenção,
filmes de "puro escapismo". Ora, então o filme é fraco?
Sim, é, e bastante. Mas nem por isso deixa de ter focos de interesse,
desde o que representa hoje no cinema mundial, até seu resultado
de público como fenômeno a ser entendido na riquíssima
relação mercado-consumidor, e finalmente até mesmo
como trabalho de um artista.
Desde o início
o que mais impressiona no filme é um clima anacrônico. Mas
não um anacronismo positivo que muitas vezes está é
à frente de seu tempo. E sim um anacronismo numa época onde
a obra de arte, em especial no cinema mas sob forte influência televisiva,
parece cada vez mais ciente de seu passado, de sua história, contando
com a resposta do público aos mais sutis efeitos metalinguísticos
que reconhecem a linguagem e a história do audiovisual como naturalmente
assimiladas por quem assiste. O Capitão Corelli faz justamente
o contrário: ao colocar pastiches de gregos, italianos e alemães
em conflito numa ilha grega na Segunda Guerra, parece nos transportar
a um cinema dos anos 40 ou 50, desde a ingenuidade nos sotaques carregados
quase de pastelão (com todos falando inglês, claro), até
todas as atitudes estereotipadas. É incrível que um filme
em 2001 trate o público como se já não tivesse superado
esta fase. Em muitos momentos parece que estamos assistindo um esquete
do Saturday Night Live, mas sem piadas, o que é o pior.
Claro que isso não é por acaso, pelo contrário. O
diretor parece estar indicando que vai fazer sim um cinema fora do seu
tempo, uma tentativa de retomar uma tradição, como se fizesse
um musical, que sempre leva a comparações com o passado
de um gênero. Infelizmente, não funciona como linguagem este
seu viés "atemporal", para ser simpático.
Assim, a primeira
hora do filme transcorre como se assistíssemos a uma chanchada
dos filmes de guerra. Mas uma chanchada que se leva a sério, pecado
mortal. Temos uma insinuação da relação conflituosa
entre gregos e italianos, até interessante, mas logo transformado
em palhaçada com os italianos "impulsivos e amantes da boa vida"
conquistando o coração dos gregos desconfiados. Impossível
não lembrar do filme Mediterrâneo, de Gabriele Salvatore,
que tratava do mesmo assunto, mas assumia seu tom farsesco com tal força
que nos fazia comprá-lo. Aqui não, temos o exemplar mais
ridículo de cinema: a farsa que não percebe que o é.
E, como se não
bastasse, de repente, o filme muda completamente de figura: com um enfrentamento
repentino entre italianos e alemães, entra em cena um aparato de
filmagem que mostra o quanto Spielberg fez mal ao cinema com sua cena
de abertura de Soldado Ryan, porque agora parece que há
uma competição por "cena de batalha mais espetacular" (lembremos
que John Madden perdeu o Oscar de melhor diretor para Spielberg, mesmo
levando melhor filme com Shakespeare Apaixonado, só por
causa daquela sequência). Nenhuma destas cenas é sobre nada
além do que a capacidade do cinema americano de filmar uma batalha.
Este é sempre o seu assunto, nunca as vidas em jogo, o sofrimento
causado ou a estupidez da guerra, como podem alegar seus diretores. Desta
cena em diante o filme assume outro anacronismo ainda mais impressionante:
o do alemão nazista como o ser mais maldoso a jamais existir. A
ele não é permitido o nuance, o detalhe. São maus,
e só. A platéia está, portanto, convidada ao sentimento
que mais tem sido americano hoje em dia: o desejo da retaliação.
Claro, porque se nós somos tão bons e justos e eles tão
maus e loucos, só venceremos aniquilando-os. Qualquer pessoa com
mais de dois neurônios tem que parar nesta hora, olhar o mundo em
volta, e ver porque o cinema comercial americano é assunto sério
(senão por nada, comparem a cena de um terremoto no filme com o
que andamos vendo). Porque muitas vezes as TVs copiam aquilo que assistimos
por décadas no cinema como linguagem dominante, e têm o mesmo
efeito no cidadão que o filme tem no espectador: precisamos explodir
os vilões. Sejam eles de carne e osso ou celulóide.
Pior, ao dar este
salto despropositado o filme ainda assimila outra lição
clássica e absurda do cinema americano: desde que um casal se ame
no final, toda carnificina será esquecida e até justificada.
"All is well that ends well". Ou seja: o que é a dor de alguns
para atingirmos o triunfo do indivíduo? Com um final cara-de-pau
como poucos já vistos, o filme parece assumir: sou mesmo picareta,
e daí? E daí, nada, mister John Madden, e daí nada.
Você só não vai enganar todos de que seja apenas e
tão somente isso: "A melhor diversão". Tá bom. Bin
Laden que o diga.
Eduardo Valente
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