A Cidade está Tranqüila,
de Robert Guédiguian


La Ville Est Tranquile, França, 2000

A ambição é admirável: através da vida de uma infinidade de personagens, traçar um panorama da cidade de Marselha, antigo pólo industrial e portuário, hoje vivendo com os problemas de uma cidade em crise de redefinição. Impossível, pela dimensão do projeto, evitar a idéia de um filme-inventário, que aliás o filme já revela em seu título: "a cidade está tranqüila (a correta tradução), a cidade vai bem"... Apesar dos dramas, as pessoas continuam vivas. Há um lado de cidadão interessado na vida da cidade que de cara já nos faz interessar pelo filme de Robert Guediguian. Não se trata de um cinema em que o político está de cara já em jogo, em que uma intriga propriamente política já está em curso e vem mexer com as vidas dos personagens (Loach, Rosi), mas como o político se exerce ali mesmo onde não se imagina, no tecido mais fino da vida social, o do cotidiano. A Cidade está Tranqüila é um imenso filme-painel onde entretanto as limitações desse formato não aparecem (moralismo, redução de problemas, a desagradável sensação de "destínuo mútuo dos personagens). É um testemunho apaixonado de boa saúde, sem entretanto descambar para o publicitário, longe disso: há problemas com drogas, extremismo racista de direita, gente sem dinheiro, incompreensão, arrivismo de esquerda...

Apresenta-nos o filme um pequeno gênio, um menino vindo da Europa do Leste que toca teclado numa praça para poder comprar o piano necessário a seus estudos no conservatório, e ganha as pequenas contribuições dos transeuntes. Bela e inspirada metáfora para construir o filme: a cidade que luta aos poucos e humildemente para lutar contra a adversidade e conseguir seus objetivos. Ao fim do filme, um piano chegará num prédio pequeno, onde aparentemente residem os imigrantes de todos os países pobres em volta da França (leste europeu, ex-URSS, Maghreb)... A Cidade está Tranqüila é, entre outras coisas, uma preocupada observação sobre os extremismos contra os outros povos que se refugiam na França (racismos, ultra-nacionalismos). Um dos personagens do filme é um homem de meia-idade, desempregado já há algum tempo, que passa a freqüentar as reuniões de um partido de extrema direita, onde se ouve a seguinte pérola da estupidez: "da mesma forma que amamos todas as mulheres, mas preferimos nossas esposas, amamos todos os povos, mas preferimos os franceses". As observações políticas também são bastante visíveis, mas nunca soam invasivas em relação aos personagens. Um deles, um aposentado ex-militante de sindicatos e do Partido Comunista Francês, tem um filho que acaba por aceitar um plano de demissão voluntária para, com o prêmio, comprar um taxi e mudar definitivamente de profissão. "Em tempos atrás eu cuspiria na sua cara por fazer isso, mas acho que você tem razão, hoje o sindicato é ocupado pelas mesmas pessoas que votam na extrema-direita e recusam os imigrantes", diz o pai. Em outra ocasião, ele se mostra infeliz com os rumos da política formal: "Hoje, você vê que os políticos de esquerda são os maiores amigos dos homens de direita, que freqüentam as mesmas festas, etc."

Mas se há alguma desesperança política que se destaca no relato de A Cidade está Tranqüila, do lado dos indivíduos o filme lança um olhar honesto, simpático mas nunca indulgente, mostrando sempre um perfil de coragem diante de um futuro nem sempre feliz, muito difícil mas sempre com alguma possibilidade. Como a pungente história de uma mãe que trabalha na indústria de peixes e depara-se com sua filha prostituindo-se em sua própria casa para conseguir comprar heroína, ou de Abderrahmane, jovem maghrebino que cativa o amor de sua professora, vinte anos mais velha, burguesa, loira. Esse amor entre diferentes, essa mistura adorável dá o tom de A Cidade está Tranqüila, filme que faz da cidade o seu verdadeiro tema, da relação entre passado e presente, da vida dos mais recônditos estratos sociais (de grandes arquitetos às prostitutas, passando por filhas de políticos e operários). Não é, entretanto, tudo que funciona à perfeição no filme de Guédiguian. Na última meia hora, tudo passa a assumir uma dimensão de melodrama, os acontecimentos começam a aflorar ao mesmo tempo, comprometendo um pouco a visão quase antropológica e se rendendo demais à tentação de levar as vidas dos personagens para situações-limite que acabam enfraquecendo um filme que, mesmo assim, é belo, é emocionante, forte e que mantém um olhar sincero e generoso diante da vida da cidade. De qualquer cidade.

Ruy Gardnier