A
Cidade das Almas Perdidas,
de Takashi Miike
Hyoryu gai, Japão,
2000
Elogio da mestiçagem
Em cada imagem que
nos vem à mente logo após a projeção do filme,
a cada plano ou seqüência que relembramos de A Cidade das
Almas Perdidas, conseguimos restituir acima de tudo um esquisito sentimento
de esquizofrenia. Imagens perdidas num caleidoscópio, giradas,
confusas e entretanto belas, de uma composição nada equilibrada,
feita ao invés para desafiar todo equilíbrio, para fazer
um cinema vertiginoso. Nem obra "de arte", nem de exploração
comercial – embora se deva supor algum sucesso de público para
este filme –, nem um estudo sobre a condição humana, nem
um idiota conflito do bem contra o mal, A Cidade das Almas Perdidas
vai confundir mais de um, vai desagradar a quase todos, e ainda assim
sente-se a necessidade de dizer: trata-se de um belo filme. De um filme
muito irregular, que não vai em momento algum até o fim
das histórias que propõe, que as junta todas dando um ritmo
muito esquisito a cada momento, mas que entretanto segue muito bem as
lições de um outro mestre japonês que soube muito
bem fazer produções alucinadas com perfil comercial: Seijun
Suzuki (A Marca do Assassino, Elegia da Briga).
Takashi Miike vai,
com sua estética, à raiz do problema: seu desejo não
é construir um filme para cativar a audiência, criar climas,
acentuar sutilezas... seu cinema caminha por um outro percurso, um cheio
de curvas, derrapagens e eventuais mergulhos no nada. Ele faz um cinema
onde os gêneros se misturam, onde a velocidade da narrativa não
nos dá tempo de nos emocionar com o sofrimento dos personagens
ou apreciar alguns dos mais belos planos dos últimos anos, mas
em compensação ele nos oferece uma viagem de montanha-russa
que nos deixa ofegantes. É certo que o cinema "de autor" hoje dá
mais atenção à melodia do que ao ritmo. Só
alguns poucos – Tsui Hark, Straub, Oliveira, Cronenberg – sabem nos propor
jogos de velocidade e ralentamento. A esses acresce Takashi Miike. Pois
o trabalho que Miike realiza com os gêneros – e com os diferentes
modelos de audiovisual: videogame, computação gráfica,
desenho animado – só pode ser entendido se for compreendido à
luz do ritmo.
Num ônibus-prisão,
destinado a retirar os clandestinos do Japão, está Michelle
Reis, que interpreta uma cabelereira chinesa. Perseguindo o ônibus
num helicóptero está Teah, um brasileiro descendente de
japoneses, que metralha o ônibus para resgatar sua amada. Filmado
como cinema de ação, com uma música rápida
de guitarras furiosas, a cena precede uma outra em que o casal foge, pula
do helicóptero de uma distância absurda e sai ileso: quebra
do mecanismo de ilusão do cinema, que nos remete aos corpos eternamente
incólumes dos personagens de desenho animado. Encaminhando-se para
o bairro brasileiro – mais especificamente para um botequim chamado "Barquinho"
–, eles encontram um malandro carioca (interpretado por Marcio Rosário),
que irá ameaçar o casal com uma faca. A Cidade das Almas
Perdidas caminha rapidamente do filme de ação para a
comédia e depois para a intriga romântica, passando pelo
drama, pelo filme espírita, filme de yakuza, cinema de arte, desrespeitando
absolutamente todos. É um filme de mestiçagem, que se resolve
pela confusão de gêneros no nível da narrativa e pelas
diferentes raízes culturais no plano da história a ser contada.
Teah é um japonês
mulato, Michelle Reis uma miss chinesa. Há também uma prostituta
santa, uma Maria Madalena gostosíssima que protege uma menina que
perdeu os olhos e é uma espécie de curandeira, o fulgor
da inocência dentro do filme, que se passa todo no bas-fond, no
beco da perdição (daí o título do filme).
Juntos, todos aqueles que freqüentam o "Barquinho" são de
alguma forma uma sociedade de párias, que se aceitam mutuamente
justamente por não terem lugar nenhum. Uma comunidade multi-racial,
como nos clássicos filmes de John Carpenter. Juntos, eles tentarão
conseguir o dinheiro para tirar o casal apaixonado do Japão, uma
vez que eles fogem não só da polícia, como também
de um poderoso e andrógino traficante chinês com influência
internacional, que quer Michelle Reis só para si.
A Cidade das Almas
Perdidas é um filme sobre mestiçagem até no estatuto
das imagens. Se o começo nos faz lembrar um filme americano seguido
de um desenho animado, logo depois veremos uma rinha de galos feita completamente
em imagens de síntese – e obrigatoriamente tosca – que inicialmente
parece um jogo de playstation. À medida que uma confusão
estoura no local, os galos incandescentes pulam em cima da platéia
da rinha em cenas hilárias e absolutamente impuras, que tiram sua
graça justamente desse efeito de mestiçagem causado pela
falta de verossimilhança. Mas não é de se supor que
esse filme – como a obra de Miike – possa cair na designação
de cinema trash. Não mesmo. É um cinema da experimentação,
da inventividade e da exploração – há liberdades
narrativas "poéticas" realizadas em cenas de violência que
parecem um pouco exageradas. Há nele até mesmo um plano
digno de antologia, quando a menina cega caminha, as costas para a tela,
em direção a sua protetora, e um espelho no lado direito
do plano é a única coisa que nos permite saber que ela lhe
toca levemente o rosto – estando de costas, seu corpo tampa tanto seu
braço quanto o rosto da mulher.
Mesmo que haja imagens
de exploração da violência, A Cidade das Almas
Perdidas não se pode considerar de forma alguma como incensando
a violência, ou dando a ela o estatuto de glamour. Muito menos trata-se
do pior tipo de aceitação da violência, quando ela
é submetida ao personagem malvado por um homem de bem (e que domina
todo o cinema americano de ação). O filme não julga
moralmente os personagens, não justifica violência nenhuma,
só tira proveito estético dela, numa atitude de pseudo-inocência
que não é tranqüila para todos, mas que é mais
do que comum em qualquer jogo de videogame há mais de 12 anos.
A Cidade das Almas Perdidas termina com uma estranha deliberação,
espécie de mensagem divina recebida pela menina santa, que para
dar um fim à matança toma uma decisão que quebra
com todas as leis do gênero do cinema de ação (para
o bem do leitor, não diremos qual é). Menos uma obra perfeita,
talhada como diamante, do que uma excelente experiência, exuberante
pedra bruta, esse filme de Takashi Miike vai permanecer como um dos poucos
momentos dos últimos anos em que o cinema ousou propor um jogo
de ritmo ao espectador. Um filme stravinskiano, wellesiano, mas acima
de tudo um cinema urgente, esbaforido, atônito.
Ruy Gardnier
|
|