O
Fabuloso Destino de Amelie Poulain,
de Jean Pierre Jeunet
Le fabuleux destin d'Amélie
Poulain, França, 2001
"Tem coisas que o dinheiro não compra..." – esse cínico
slogan de cartão de crédito, parece ser uma importante referência
para o cinema apresentado por J.P. Jeunet. O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain é um compêndio de tudo o que há de mais
perigoso/desprezível no cinema esteta-pastel de vento que
vem fincando pé em grande parte da produção cinematográfica
atual... Se você ainda não assistiu ao filme, prepare-se
para duas horas de piadinhas e humanismo de botequim, tentando fazer de
cada plano uma coisa mais bonitinha/engraçadinha que a outra. Se
há mérito para Jeunet, é o de conseguir realmente
encaminhar seu filme para seus fins: diluindo todos os eventos da vida
de Poulain dentro de seu discurso fabuloso e imbecilizante.
Toda a narrativa é
permeada por uma lógica do absurdo. Absurdo que serve nunca para
causar estranhamento, pensamento crítico, mas apenas para entreter
o espectador com nonsenses inócuos. A história da
menina tímida que vive isolada pelos pais é salpicada de
pequenas imagens que buscam apenas um desenfreado esvaziamento dos sentimentos.
Alienado da vida cotidiana, o filme se mostra como a tentativa (infelizmente,
alcançada) de transformar todos os eventos em uma ferramenta narrativa
para fazer rir, para fazer gracinhas de forma açucarada. Uma espécie
de Poliana pós-moderna, a menina tem uma grande bondade no coração
e resolve se dedicar à ajudar os outros em suas vidas, nas dificuldades
alheias que ela identifica. Seu método é uma egoísta
manipulação da vida alheia, em que seus atos refletem aquilo
que a personagem vê como BOM para o outro. O problema é que
o filme em nenhum momento tenta se distanciar desse olhar egoísta-ditador
das boas atitudes de A. Poulain; pelo contrário: o filme concorda
(narrativa e formalmente) com todas as atitudes da personagem. Até
mesmo quando, para ela, a bondade é infernizar a vida de um comerciante
mal-encarado: o filme faz graça (trilha sonora e planos) para que
o espectador ria das agruras sofridas pelo personagem. Esse tipo de bondade,
que o filme mostra de forma bonitinha, nunca é questionada. Quem
é A. Poulain para decidir o quê é bom ou mau? Quem
merece ser protegido por ela ou atacado? Essa bondade cega e estúpida
é mostrada no filme como algo fabulosamente encantador e o público
é levado a adorar a figura frágil da jovem que ajuda aos
outros.
Se há distanciamento
narrativo em Amélie Poulain, isso se dá apenas em
algumas passagens onde animações e efeitos especiais são
lançados na tela. Porém, esse distanciamento não
funciona como um espeço de observação crítica
dos personagens, mas como um reforço narrativo para que o discurso
do filme fique ainda mais claro.
Se há a tentativa
de uma homenagem a Truffaut (na cena em que a personagem vai ao cinema
e assiste Jules et Jim), ela é uma equivocada e pobre
referência. Se a personagem inconsequente de Amélie Poulain,
de alguma forma, foi inspirada na mulher que desatina a vida dos dois
amigos, Jeunet se esquece de uma questão central na constituição
de uma narrativa cinematográfica: a diferença entre o discurso
das personagens e o discurso do filme. A inconsequêcia jovial de
Jules et Jim é o tempo todo mostrada com um certo distanciamento
crítico e seu desfecho tem muito mais de melancolia-perplexidade
do que de louvação de suas atitudes. Isso é: o filme
não trata a realidade das personagens como elas gostariam que essa
fosse. No filme de Jeunet, o diretor compra demais as vontades de Amélie,
fazendo da mis-en-scéne e da direção de arte
apenas as reiterações do mundinho fantasioso vivido por
ela. Os elementos de realidade colocados por Jeneut no filme são
de tal forma estetizados e harmoniosamente locados, que passam desapercebidos
pelo olhar do espectador e da própria personagem. Ao contrário
de seus filmes como O Ladrão de Sonhos e/ou Delicatessen,
a fantasia de Jeunet em Amélie Poulain não consegue
alcançar o estatuto de fábula – essas pífias tentativas
de trazer o filme para a "realidade" cotidiana, acabam funcionando
como uma projeção da fantasia. Isso é: enquanto em
Ladrão de Sonhos/Delicatessen talvez seja possível
"acordar" após o fim da projeção, em A
Poulain, o estatuto de realidade está presente de uma forma
em que o discurso fílmico se debruça diante da realidade
além filme. Há sim, portanto, uma visão de mundo
sendo lançada.
Imagens como a da
morte da mãe de Amélie, em que a mulher é atingida
por uma turista suicida, explicam muito da insensibilidade visual que
os espectadores vêm demonstrando nas salas de cinema. Foi impossível
não lembrar da cena em que um menino se mata se jogando de uma
ponte em Má Companhia (Japão, 2001) e que teve como
reação da platéia do Festival uma retumbante gargalhada.
Esse distanciamento indiferente do todo poderoso público auto-consciente
do cinema, ao encarar imagens de violência como imagens de farsa,
é que vem sendo continuamente multiplicado por filmes como A
Poulain. Há uma total indiferença pela Persona de quem
se vê – o que vale é sua aparência física, a
queda absurda, hilária... Filmes como A Poulain contribuem
para que a imagem do cinema cada vez mais perca sua força, criando
espectadores totalmente anestesiados. Todo o sofrimento sofrido pelas
personagens são motivo de ironia rala que vende as boas intenções
e o olhar cool descolado com que Amélie observa o mundo – fazendo
o mundo, manipulando-o como bem quer. A aura de boa menina de Amélie
é extrapolada em todas as cenas e defendida pela narrativa: seus
atos bondosos têm bons resultados!
O pai se liberta de
sua vidinha triste e vai viajar... O homem que morava em seu apartamento
reencontra a filha... O pintor consegue pintar suas próprias pinturas,
ao invés de copiar a de Renoir... A vizinha acredita na falsa carta
de amor que recebe... Amélie e seu amado passeiam de bicicleta...
Tudo dá certo.
Quase tudo: provavelmente
devido a um mínimo senso de ridículo, Jeunet faz com que
umas das ações de Amélie não fosse de todo
feliz: a união de um casal de conhecidos. Porém, essa tentativa
falsa de ser auto-crítico é esquecida pela narrativa e,
pior, atinge justamente os dois personagens tachados como feios, estranhos
e bizarros: isso é, somente no que já estava meio caminho
"errado", Amélie consegue errar. Narrativamente, o casal
já era mesmo um foco de piadas patéticas, o que faz com
que seu certo fracasso junto se prenda a uma mera ridicularização
de suas figuras. Ridicularização que impede que se chegue
a pensar, em qualquer momento, na atitude manipuladora de Amélie
como passível de fracasso...
Um cinema bem acabadinho.
Bonitinho. Em que tudo dá certo, em que tudo é feito para
agradar aos olhos do espectador e vender uma inconsequente e perigosa
visão da bondade. Uma visão que ignora o cotidiano vivente
das pessoas, que atropela a opinão alheia, que serve como alienação
de mundo. Uma visão que nunca se coloca como a possibilidade de
uma abertura para o diálogo. Amélie toma a vida dos outros
para si e, totalmente apoiada pelo filme, os faz felizes seguindo as interpretações
que ela mesma faz de suas vidas.
Um filme extremamente
bem-realizado tecnicamente, seguindo todos os padrões de beleza
da publicidade e do vídeo-clip, e que funciona muito bem com um
público disposto a apenas esquecer do mundo e aprender que ajudar
os outros é uma coisa que a Amelié Poulain já tá
fazendo lá nas bandas dela e que, portanto, não precisa
nem pensar sobre isso... Ou pior: de que já é hora de começar
a ajudar os outros e para isso impor seus padrões de bondade e
felicidade.
Curiosidade: O ataque
norte-americano ao Afeganistão, que acontece enquanto escrevo essa
pequena crítica, não é calcado justamente na suposta
sabedoria que os EUA dizem ter sobre o que é bom e mau para o mundo?
Coincidências. Pois é, as coisas se entrelaçam...
Um filme nunca é tão inofensivo como pode parecer...
* * *
Mas e sobre o sucesso
de público? Totalmente compreensível por sua forte hipnose
formal. O que se espera da crítica cinematográfica é
um posicionamento mais questionador diante do filme. Um olhar crítico
que saiba levantar discussões menos superficiais sobre seu discurso
e seus efeitos no olhar do espectador. Um olhar crítico que Jeunet
passa 120 minutos tentando sepultar mas que Contracampo, ao menos, tenta
aqui desenterrar um pouco...
Felipe Bragança
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