A
Ilha,
de Kim Ki-Duk
Seom, Coréia do
Sul, 2000
Um cinema das intensidades.
De sentidos. Despreocupado com o que há de plausível, explicado,
concretamente presenciado... Em A Ilha, o que se vê é
a presença pura das imagens: mágicas, ilusionistas, cruamente
dispostas diante dos olhos. Atacando os olhos, invadindo-os...
A história
de um lago. De uma ilha. A história de uma mulher e um barco. Um
barco que atravessa um lago num ir e vir inesgotável. No meio do
lago, boiando no espelho da água, estão uma dezena de pequenas
casas-barco, coloridas cada uma com uma cor distinta, ali, paradas...
Estáticas as casas recebem visitantes: são pescadores que
trazem seus anzóis, suas iscas, suas mulheres. Mulheres de aluguel,
prostitutas que acompanham as noites solitárias no meio do lago...
A mulher que cuida das casas, também vende seu corpo. Sua indiferença
e seu silêncio. A repetição dos gestos, dos dias,
dos caminhos.
A forma indiferente
(quase catatônica) com que a personagem da mulher se coloca diante
de seus afazeres é o que causa um dos maiores impactos do filme.
Kim Ki-Duk sabe respeitar o olhar de sua personagem e tratar os eventos
não como espetáculos cinematográficos, mas como sentidos
sutis que vão animando a atmosfera, o olhar da mulher e de sua
rotina no lago.
Quando o Homem chega
ao lago, silencioso, algumas coisas parecem começar a mudar. A
mulher se interessa por aquele silêncio, por aquela ausência
de interesse. Os olhares vazios do homem passam a nortear todas as ações
da mulher...
Enquanto vemos a aproximação
dos dois, sutis comentários narrativos são feitos através
da rotina do lago: acrueldade da cena em que pescador retira filés
de um peixe de forma a ainda deixá-lo vivo e poder retorná-lo
à água, é impressionante. Imagens como essa parecem
gritantes ao espectador não por uma forma opressiva de serem filmadas,
mas justamente pela leveza da câmera em sua observação.
A mesma leveza que nos mostra a mulher surgindo nas águas escuras
da noite no lago e atacando um hóspede que a tratara com desprezo
(ou salvando o homem do suicídio). É a leveza, a naturalidade
com que as cenas rotineiras se misturam com as imagens de violência
que criam toda a atmosfera antinaturalista do filme. Percebemos as imagens
como intenções e não como retratos de uma história
imparcial, externa às imagens. Tomamos consciência de suas
intenções.
Quando o homem tenta
novamente a morte engolindo os anzóis, temos a deixa para uma das
cenas de sexo mais bonitas que já pude assistir: um sexo de salvamento,
de carinho absoluto, de vida e de desejo. O homem, ainda paralisado após
ter os anzóis arrancados de sua garganta, observa-se incrédulo
em meio ao prazer inesperado que aquela silenciosa mulher ali lhe dava...
A partir desse instante, sem que maiores palavras precisem ser ditas,
uma ligação muito forte parece unir os dois personagens.
Uma ligação que não se explica, que não se
justifica: o homem sabemos apenas de suas vagas memórias de um
assassinato; da mulher, só sabemos do silêncio.
Quando o homem é
erguido do fundo do lago , fisgado por seu próprio anzol, percebemos
que temos diante de nós um filme de imagens únicas. Inesquecivelmente
inexplicáveis, incrivelmente capazes de nos tirar do chão
da realidade e não nos depositar em nenhum outro. Os peixes se
debatem, a mulher e os homens se debatem. Seus olhos se esbugalham como
os de um peixe. Passamos o filme inteiro em suspensão, como que
perdidos na água do lago. Lago que é memória, que
é esquecimento...
A mulher que vive
na ilha. A mulher que é uma ilha. Uma ilha em que o homem parece
chegar feito um náufrago e onde, aos poucos, vai criando sua própria
vida. O lugar por onde caminha, com água pela cintura, até
desaparecer...Os assassinatos, a autoflagelação da mulher,
são como sinais para um náufrago. Sinais que o homem demora
a enxergar. Enquanto a casa-barco-ilha (mulher) flutua quieta no meio
do lago.
Felipe Bragança
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