A.B.C.
Africa,
de Abbas Kiarostami
ABC Africa, Irã/França,
2001
Uma breve constatação,
antes de tudo: Abbas Kiarostami é sempre o homem que chega depois.
Depois da tempestade, ele chega, vem e observa. Seus filmes são
antes de tudo a notável declaração de que apesar
de tudo, há vida ainda brotando de cada pedaço de chão,
de cada pessoa, seja a adversidade que for. Nada mais indicado, então,
do que fazer o cineasta da vida visitar o continente da morte, assolado
desde que se tem notícia pelo homem branco, por suas doenças
e pelas infindáveis lutas entre tribos. Mas não é
um documentário sobre a África que Kiarostami deve fazer.
Como diz o fax, no primeiro plano do filme, ele deve filmar o esforço
que vem sido feito por uma instituição capitaneada por um
grupo de mulheres da Uganda para amenizar a vida e dar condições
de existência a 1,5 milhão de órfãos no país,
muitos deles portadores da síndrome de imuno-deficiência
adquirida, a AIDS. O pedido deixa claro: com um filme de Kiarostami, o
mundo inteiro saberia sobre esse esforço hercúleo para tentar
reconstruir um país arrasado por guerras civis e doenças
destruidoras (além da AIDS, a malária). Kiarostami deixa
o espectador ciente da natureza do projeto, um filme de encomenda, e das
esperanças do grupo nele. O cineasta só não deixa
claro de início aquilo que ele espera do filme que vai fazer.
Mas isso não será necessário, pois o próprio
A.B.C. Africa deixará suficientemente claro.
Claro, como filme
de encomenda, A.B.C. Africa está restrito a certas regras,
a certos protocolos. E eles certamente não são do interesse
de Kiarostami. Todo o processo através do qual as mulheres de Uganda
devem aprender contabilidade e sustentar seu grupo, todas as medidas tomadas
para fazer com que os grupos não tenham dificuldades financeiras
são acompanhadas com frieza puramente descritiva por Kiarostami.
Em todas as visitas necessárias e protocolares às instituições
e hospitais, a câmera do autor de A Vida e Nada Mais insiste
menos nas pessoas entrevistadas (que quase nunca aparecem) do que nos
rostos das pequenas crianças. Assim, a visita ao hospital para
tratamento de crianças com AIDS, um tema muito delicado de ser
tratado, algo quase interdito ao cinema sob risco de exploração
pseudo-humanitária, é filmada com frieza, com contenção,
sem saber exatamente de onde extrair o sentido profundo daquilo que está
sendo filmado. Esse sentido, ele logo será encontrado logo depois,
quando uma das câmeras encontra um pedaço de pano dobrado.
Dentro, uma criança morta, jamais visível. Esse pequeno
pano é dobrado, é colocado numa frágil caixa de papelão,
e é levado até a parte traseira da bicicleta, onde quase
cai. Toda a fragilidade e a crueldade existencial de uma criança
infectada por AIDS, não encontrada em nenhuma das imagens de dentro
do hospital, atinge entretanto toda a sua significação em
outro lugar.
Mas o grande tema
de Kiarostami não é a visita. Como sempre, seus filmes que
têm como aparente tema a morte ou a desgraça são na
verdade ardorosas declarações de amor à vida. Assim,
uma visita humanitária, obrigatoriamente lidando com afecções
de tristeza, transforma-se em gloriosas odes à vida quando a câmera
da Kiarostami está na rua, filmando os nativos dançando
e atuando diante da câmera, nos grupos de dança, tendo aulas
debaixo de uma árvore que oferece uma sombra agradável,
etc. Ele nunca será o cineasta que se lamenta pela morte, mas aquele
que procura, entre cem mortos, um vivo. Na piada, ele é aquele
que vê seu copo 50% cheio. O verdadeiro tema do filme, a verdadeira
intenção de Kiarostami que aparece desde cedo no filme é:
"A vida que resiste à guerra civil, à doença,
à orfandade, à pobreza". Não a pergunta: "Como
é que eles vivem assim?", mas justamente a constatação:
"Eles vivem assim". A vida é sempre mais forte, ela é
essa incrível vitória.
A.B.C. Africa
atinge seu momento mais importante quando deixa tudo isso às claras,
ou melhor, no escuro. À meia-noite em Uganda, todas as luzes se
apagam, medidas de contenção de eletricidade. As câmeras
estão ligadas às 23:59, e filmam justamente o momento em
que a luz cai. Puro momento de cinema, passamos alguns minutos em breu
total, a tela incapaz de nos mostrar nada além de um negro homogêneo,
e somente ouvimos a voz de Kiarostami e de seus assistentes: "Deve
ser horrível viver assim", etc. Ao que o cineasta responde,
"Sim, para nós é insuportável porque estamos
há cinco dias. Em cinco meses, em cinco anos, nos acostumaríamos".
Continuamos ouvindo passos em escada, imaginamos que todos se dispõem
para dormir. A câmera, no entanto, permanece ligada. A chuva começa
a cair. Ouvimos um barulho. Finalmente aparece uma fonte luminosa, e finalmente
podemos enxergar alguma coisa novamente: um relâmpago preenche a
tela de um branco forte, e da visão da paisagem, pois descobrimos
que a câmera está apontada para a janela. Essa imagem, contudo,
só nos comprova a fugacidade da luz (logo, da paisagem, de Uganda,
da África, e por fim do cinema). A imagem seguinte tem ares de
ressurreição: o dia renasce, a luz volta, a paisagem está
salva dos barulhos e raios. O cinema está salvo, e a vida continua,
como já dizia um de seus filmes.
Se há momentos
brilhantes em A.B.C. Africa, eles são o suficiente para
alçá-lo à dimensão de grande obra, mas não
à de obra-prima, como ele vinha fazendo filme após filme.
Nunca obra de encomenda em sentido estrito, o filme sofre às vezes
de falta de interesse no projeto relatado duas vezes na tela, sofre de
necessidade demais de cumprir o prometido. Quando vai até seu foco
de interesse, às vidas e costumes da população ugandense,
o filme atinge momentos de muita força, alguns gloriosos. Como
a pequena menina, com uma camiseta escrita A.B.C. que, ao que parece
óbvio, dá o nome ao filme , que ensaia seus primeiros
passos, frágeis, tentando firmeza. Ela é importante pelo
conteúdo humanitário do filme porque é adotada por
uma família européia. Para Kiarostami, entretanto, o que
é tão importante nela é que trata-se antes de tudo
de alguém que está dando os primeiros passos. Malgrado o
ambiente, os dramas e adversidades de um país miserável,
há algo que vive. Há algo que tenta sustentar-se em seus
pés. Esse pode não ser necessariamente o A.B.C. da África.
Talvez seja antes a sua exceção. Mas é certamente
o ABC, o beabá de Abbas Kiarostami. E esse esforço por manter-se
vivo, por lutar contra a morte e mostrar-se uma afirmação
de vida, isso existe em A.B.C. Africa.
Ruy Gardnier
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